quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Morre o lobo, nasce a criança

Teve um teatro de fantoches, na escola. Lobo Mau e Chapeuzinho vermelho. Assim que apareceu a Chapeuzinho, as crianças gostaram. Cantaram junto a "pela estrada afora...". Já a aparição do Lobo fez com que muitos se levantassem para bater nele. Na plateia havia um menino chorando desde a Chapeuzinho. Com o Lobo, passou a chorar muito mais.

Quem havia se levantado, sentou, e foi ouvir as falas do vilão. Na devida hora, as criancinhas acompanharam o "eu sou o lobo mau, lobo mau, lobo mau. Eu pego as criancinhas para fazer mingau". Uma menina cantava de pé. Sua mímica dizia que "a vida é assim mesmo, o que o Lobo pode fazer?" "Hoje estou contente, vai haver festança. Tenho um bom petisco para encher a minha pança". A natureza não é a harmonia do instinto com a necessidade, ou seja, a caça para saciar a fome. A natureza tem crueldade, tratar o outro como petisco e encher a pança. É o que o próprio homem faz. Só que o homem pode ser cruel, mas não mais do que o Lobo Mau. O homem é demasiado humano. Ele come tudo, mas diz fazer consumo consciente. Tem um quê de estoico, preocupa-se com o fim dos recursos do mundo, não pelos recursos em si, mas por não querer passar privações. O Lobo é o cara que vai no rodízio de petiscos para devorar camarão e ovo de codorna, como quem come arroz, e não vidas mortas. O Lobo não se prende à cadeia alimentar. Fica petiscando até estufar. Ele não se satisfaz, nem se põe limite. Só pára quando o corpo deforma e ameaça estourar.

A chapeuzinho levará docinhos para vovó. Esta ficará bem satisfeita. Como a netinha é boa! Os docinhos serão um afeto transmitido de neta para avó. Geralmente é a avó que dá doces para os netos. A chapeuzinho se contém, não come os doces, para oferecê-los à vovó. É uma juventude que se dá à tradição. A tradição continuará. E os laços afetivos entre vovó e netinha são criados, quando esta nem pensa em agir como criança e devorar os doces.

As crianças cantaram com prazer a música do Lobo. O prazer está do lado dele. Ele engana e luta com o objetivo de comer. Não há nada melhor do que comer o máximo possível. Engoliu a vovó de uma vez, sem mastigar. Ela ficou inteirinha lá dentro. Ele disfarçou-se com as roupas da vovó para também engolir a chapeuzinho. Ele nem se preocupava se esta também caberia na pança. Pança aguenta bem mais coisa do que estômago. A menina veio carinhosa, e a conversa do Lobo a atraía. Como era ele no lugar da vovó, a bondade de chapeuzinho não formaria qualquer laço afetivo. A vovó estava dentro dele, presa.

Como um macho pode ter pessoas dentro de si? Só se for porque assaltou uma dispensa e uma geladeira, e correu para um lugar seguro para digerir por um tempão. O Lobo se diverte, não trabalha. Ele pilha, é um pirata, toma pela força enquanto sorri. A vida é assim, mas não a nossa vida. A animalidade foi deixada de lado. Crianças aprendem a trocar o prazer imediato pelo agradar, em busca de uma afeição que poderá garantir pequenas porções diárias de comida e brinquedo, durante muito tempo. Aceitam isso, uma vez que lhes é vetado o prazer do ser bicho. O Lobo é mau, mas elas o entendem bem. E entendem que ele precise morrer. Ou melhor: ficar meio morto.

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