sábado, 11 de outubro de 2014

Quanto dura uma criança?

1. Uma criança não é um boneco.


Na escola, os garotos ensaiavam uma peça. Segundo ensaio, de vários. A história ainda ganhará corpo. Era uma floresta, com animais, uma fada e um boneco. A fada chegou voando até o boneco. Pôs as mãos em suas orelhas. Ele as agarrou. "Não segure, você é um boneco". Para se despregar das orelhas do boneco, a fada encostou seus pés nos dele. Os pés também ficaram presos. Numa impulsão, a fada conseguiu se soltar. Saiu voando. O boneco lá ficou. Era para estar parado, mas se mexia.

Houve um tempo em que esse menino não tinha interesse em participar das atividades. Ficava destacado da turma, brincando sozinho. Ajudamo-lo a vir para perto das outras crianças. A ideia era que ele experimentasse as mesmas situações e coisas que os demais. Aos poucos o seu tempo de permanência nas atividades aumentou. Vivendo o social, de jogos e perguntas, e com as necessidades dele, a linguagem, a comunicação começou a ser treinada. O mundo que incluía os outros era interessante. Ele não precisava viver se protegendo. Alguns amigos percebiam a falta de costume dele com as brincadeiras de luta, e batiam. Ele ria.

Um boneco é algo que pode ser manipulado, posto do jeito que quisermos, carregado para qualquer lado. Crianças surgem como coisas que se movem. A escola quer que elas adquiram uma regulação interna da própria desinibição (numa terminologia de Peter Sloterdijk), ou seja, que elas tenham o controle do "pôr-se para agir". À escola não chega a ir um boneco-de-pau. Após a fada, o garoto deixa o lugar do boneco e vai para junto dos personagens "crianças". Encontra seu melhor amigo, e põe-se a brincar com ele, rolando-o pelo chão. "Eu quero ser criança!", ele disse. Quer se mover sozinho, ou seja, em direção a alguém, melhor ainda se for um amigo. E que este participe, também agindo.

Seria estranho vermos um boneco de carne e osso parado, por aí. Até as estátuas-humanas, que vemos no Centro, são sujeitos: quando você acha que não, ela move-se rápido e nos assusta.



2. Clube do Bolinha


Dias antes eles haviam pintado uma parede de azulejos brancos, usando tintas de várias cores. Hoje, alguns deles fizeram desenhos e escritos na tinta, raspando-a com a unha. Segundo o garoto que não era boneco, o dedo era um "giz branco". Outro garoto, ao ver os rasgos na tinta, mostrando o branco que existe por trás, veio às lágrimas. Ele participara da pintura que "ficou tão bonita". A professora tentou acalmá-lo, dizendo que a obra passou por uma interferência. Perguntei como a pintura poderia permanecer do mesmo jeito, estando no lugar de passagem de todos da escola. A professora disse que, depois, eles poderiam repintar a parede. O menino que chorou costuma fazer desenhos assinados, e em folhas de papel. Ninguém mexe nesses desenhos, estão guardados.

Aquela turma é a dos mais velhos. Em breve eles terão que mudar de escola, e outros garotos serão os mais velhos. O tempo está passando. A pintura na parede estava caprichada, mas não podia durar muito. A criança que cresce participa de algumas obras, que congregam outros. Uma obra é a parede da escola. Outra é um desenho individual, feito com a criança rodeada de coisas e crianças. A parede mostra bem a passagem do tempo, pois ela muda a olhos vistos. Dá pra ver que o que existe está inseguro, ameaçado de não existir. Os desenhos individuais, por sua vez, são ruins para mostrar o tempo, pois mostram a permanência. E é neles que a criança será ensinada a ver o si mesmo, dela. Na primeira série, em uma outra escola, cada um terá a própria carteira. Os murais coletivos serão enquadrados. Para chamar um amigo, terão que falar. Jogar-se no pescoço dele será difícil. Precisarão chamar a si mesmos, para fazer o que a professora pediu. A mão dela não estará mais em seu ombro, orientando a deles mesmos. Cada um precisará contar consigo próprio.

No filme Os Goonies (dir. Richard Donner, 1985), muito amado pelos da minha geração, há um grupo de crianças, cada uma com características, jeitos e habilidades particulares. Eles reunem-se na casa do seu líder. Contudo, a família teve de penhorar a casa, e está sem dinheiro para pagar. Terá que se mudar. Será o fim dos Goonies. Fuçando no sótão, encontraram um mapa. Dizia ser do tesouro do Willy Caolho. Os garotos não deram fé, menos o líder. O caminho começava próximo dali. Mudar de casa e de vida, romper os laços, perder os parceiros de aventura: essas coisas poderiam acontecer. Por enquanto ainda eram um grupo, com um mapa misterioso na mão. Foram em frente. Não sabiam o que viria depois daquele dia. Os bandidos que lhes perseguiam tinham armas. O caminho para o tesouro era escuro e totalmente novo, apesar de ser o subsolo da cidade conhecida por todos. As crianças andaram pelo desconhecido, mas tinham uns aos outros, aquele círculo. Havia a esperança de encontrar qualquer coisa, não precisando ser um tesouro: podia ser um pouco mais de tempo juntos, passando apuros e diversão. O fim está próximo, não por ser amanhã. Ele sempre está próximo.

Um garoto faz bolhas de sabão, nas primeiras páginas de Esferas I, de Peter Sloterdijk. Ele observa suas obras de sopro, deslizando no ar. São de curta vida. É o halito dele que forma a interioridade de um ser, que possui uma pele que o protege do exterior. Os olhos do garoto estão fascinados: ele é criador e, por isso mesmo, está totalmente vinculado à bolha. O próprio garoto inspirou de alguém, o ar que está dentro de si mesmo. Inspirou de alguém que o criou e virou seu criador-vinculado. Assim como a bolha, ele também é acompanhado por olhos. Ambos saem da não-existência, caem na existência e retornam à não existência. Em escalas diferentes, essa é a duração da bolha e do garoto. A bolha tem suas amigas. O garoto também.

Esses círculos também têm um interior de trocas entre pares, e proteção contra inimigos externos. Nada podia vencer os Goonies, e o tesouro estava no papo. Só o tempo e suas efemérides mudaria as coisas de lugar, causando o estouro da bolha. Diz-se que criança tem sorte, ou é abençoada. O filme chega ao fim antes dos Goonies chegarem ao fim. Eles conseguem o tesouro, e salvam a casa-QG. Não importa o que houve depois do filme: ele foi muito reprisado, para que os Goonies continuassem vencendo e mantendo-se vivos. A parede de azulejos, na escola, dá sinais de que a pintura tem rasgos. Mas foram os amigos que fizeram esses ferimentos na cor. Eles serão os primeiros a ouvir o choro do garoto e porem-se a pintar o muro de volta. No primeiro ano, os olhares farão as novas cumplicidades. Haverá aquele a falar besteira, para o riso geral. E o grupinho a não se desgrudar, no recreio. Os círculos que fazem o ser criança continuarão.

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