sábado, 11 de outubro de 2014

Sou, no mínimo, um par


A laranja tem um monte de gomos, mas dizemos que tem metades. De uma porção de candidatos, tiramos um primeiro e um segundo colocados. O eleito terá o outro como oposição. Governar seria solitário demais se ninguém raspasse seu poder. As ações desse respondem às daquele, que responde de volta. Cascão vive tendo problemas com o Capitão-Feio. O Cebolinha não pode ajudar, pois está ocupadíssimo pegando o coelho da Mônica. Sansão é um coelho de pelúcia, e não pode ajudar Mônica. Mas quando eles estão a sós, certamente conversam. Batman tem uma porção de inimigos, embora em cada história o drama se passe entre ele e mais um. Em suas casas, o presidente e o Batman não estão sozinhos: a Primeira-dama e o Alfred estão lá. Nem sempre Alfred corresponde ao que quer Batman. Enfim, ele está lá não para satisfazer Batman e, sim, para ser o Alfred, aquele que sempre esteve do lado de Bruce. Sua função é cuidar dele. E Bruce cuida de Alfred.

"Nas relações que nos procuram algum auxílio ou serviço não há que preocupar-se com as imperfeições que particularmente não se relacionam com o motivo das mesmas. Nada me importa a religião que professam meu médico ou o meu advogado; tal consideração nada tem a ver com os ofícios da amizade que me devem; nas relações domésticas que mantenho com os criados que me servem, sigo a mesma conduta. Informo-me pouco se meu lacaio é casto; interessa-me mais saber se é diligente: não temo tanto um cocheiro jogador, como outro que seja imbecil, nem um cozinheiro blasfemo, como outro ignorante dos temperos." (Montaigne, Ensaios. p.60).

Bruce não fica olhando dentro do quarto de Alfred. Alfred não perturba os pensamentos de Batman. Se querem tête-à-tête, vão ao corredor. Sem ninguém por perto, vozes internas alertam os heróis dos perigos. Homem-aranha fica com a cabeça piscando de tanto que seu daimon grita, quando ele se pendura no alto dos prédios. Nunca se interrompe essa conversa (não só verbal) com alguém. Em par, as coisas soam melhor.

Canta Luan Santana: "Te dei o sol, te dei o mar (1), pra ganhar seu coração (2). Você é raio de saudade (1), meteoro da paixão (2). Explosão de sentimentos que eu não pude acreditar (1). Ah! Como é bom poder te amar! (2)".

Cantam os Beatles: "Help! (1) I need somebody! (2) Help! (1) Not just anybody. (2) Help! (1) You know a need someone. (2) Help! (Os amigos vêm fazer coro com Paul)."

Dizem que uma pessoa sempre precisa de outra. Não é que o outro dará algo que me falte, ou que eu tenha que me "abrir" para ele. Eu não sou uma pessoa que encontra outra pessoa. Eu sou "eu E outro". E esse outro é "eu E outro", em relação a mim. Só há eu se houver outro. A relação não é complemento, mas jogo, troca. Não combinei com o time adversário os lances do jogo. O jogo começa, alguém faz algo e o outro responde. Eles não têm uma consciência de observadores, mas de corpos presentes ali. Nietzsche mostrou que o uso que fazemos da gramática, em que há um sujeito e um predicado, ou um sujeito e um verbo+situação, faz com que atribuamos autonomia ao sujeito, em relação ao predicado, como se ele tivesse uma substância e preexistisse a situação de "sujeito E predicado", alguém que só pode fazer algo porque está em um lugar, diante de outras pessoas e coisas, respondendo a elas. A filosofia não vê mais o sujeito, ou qualquer outro ponto fixo, como fundamento da Verdade (e fica sem sentido as ideias de fundamento e de Verdade).

Pascal, no aforismo 322, sobre o eu, lido por Ghiraldelli (http://ghiraldelli.pro.br/pascal/), fala do homem que, tendo perdido a ligação com Deus, e o amor infinito por ele, ficou sozinho e apenas com o amor finito por si mesmo. Esse amor finito pelo eu ficou inflado, como se ele fosse o infinito perdido. O eu tomava o grande si mesmo como objeto de amor. Mas, para sua infelicidade, descobre não conseguir encontrar esse eu para ser amado. Ele ama as lembranças que tem, o corpo bonito e bem vestido, mas não um eu, para além do psiquismo e do corpo fugazes. O que é uma narrativa antissubstancialista sobre a subjetividade leva-nos de volta ao par: o eu só encontra a si mesmo nas roupas, ideias, títulos, profissões e bens que pendura em si ou dos quais se cerca. O eu é "eu E alguma coisa".

Eu sou Thiago, psicólogo. O que é o Thiago? Homem? Filho da minha mãe? Nunca vou encontrar só o Thiago. Ele não tem substância. Da mesma forma que não existe um psicólogo que não esteja afixado em alguém. Para eu ser eu mesmo, tenho que poder reacessar meus pensamentos e cargo "de psicólogo". Sou Thiago E psicólogo. Sou Thiago E uma escola com um monte de crianças, diariamente. Como ensina Sloterdijk, sou no mínimo um par. Então vem cá, dançar.

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