segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Dá para se relacionar com quem é muito diferente de você?


Minhas experiências com música ou filmes, sei que são íntimas, difíceis de explicar mesmo para alguém que tenha um gosto parecido com o meu. Entretanto, caso possamos ouvir música juntos, isso já é uma troca. Relação é, além de união, a troca em torno de algo, compartilhá-lo. Mas uma experiência íntima continua sendo difícil de comunicar. Quando conto minha história de vida para alguém, e ela entende os personagens da mesma forma que eu e, ainda por cima, faz-me pensar coisas novas, com suas colocações, estarei diante da minha "alma gêmea". Mas também podemos ter ótima relação com uma alma não-gêmea.

Gasta-se dinheiro com um filme ou um show que não são exatamente os preferidos, "por amor". Por amor, mesmo, ou seja, pela união, aceita-se compartilhar aquilo com o outro. Há quem não aceite fazer algo que envolva um outro gosto, mesmo que seja para ficar junto de alguém que se goste. Aí não se continua a relação, ou se deixa o outro sair com os amigos. Para um filósofo, o que é importante em alguém para se relacionar? Sócrates vivia a filosofia dele: ele passava o tempo inquirindo seus concidadãos sobre o que eles diziam de virtudes ou características de pessoas ou ações, como a justiça, a coragem, etc. O "conhece-te a ti mesmo" perguntava se alguém realmente conhecia o que dizia conhecer, e se estava preparado para ocupar uma função, ou ser o que queria ser. Isso fez com que muitos se incomodassem com Sócrates. Ele próprio não aguentava passar muito tempo perto da sua esposa, não dada a esse tipo de conversa.

As mulheres da grécia antiga eram do âmbito doméstico, ou seja, do cuidado com a casa e os filhos. Passar muito tempo junto delas, na cama, era um dispêndio indesculpável de energia, para o homem. Não se compartilhava assuntos da pólis com elas. Sócrates não tinha em Xantipa uma parceira de filosofia. Tampouco a maioria dos seus concidadãos o eram, para ele. Sócrates não era um seguidor de auto-ajuda, não buscava evitar ou sanar conflitos. Antes a vida tinha que valer a pena. Dado que a filosofia é inseparável do modo de viver, de um filósofo, é difícil travar relações amorosas com quem não seja também um parceiro de conversa e investigação.

Um não-filósofo tem uma opinião sobre a política. Opinião não é experiência íntima, portanto, pode ser comunicada e, por isso mesmo, atribui-se muita importância ao fato de outro escutá-la e pensar sobre ela. Ainda melhor se concordar. Um filósofo gostaria de conversar com uma namorada, também sobre política. Mas ela não gosta desse assunto. Ela pode tomar como opinião o que ele diz, e fazer de conta que a aceita, ou dar de ombros, como se aquilo não tivesse que ser importante. Fazer alguém pensar igual, para um, ou fazer alguém pensar, para outro, são importantes para que eles mantenham-se unidos a alguém. Viver bem, para um filósofo, não é viver em paz, mas também não é criar guerra à toa: é estranhar as coisas, inclusive a si próprio, e é o defender um modo de vida coletivo que assegure a liberdade e que rechace os sofrimentos e crueldades. Por isso ele, muitas vezes, é um chato, observa religiosos, cientistas, juízes, pessoas na fila do super-mercado, etc, e, se precisar, "cria caso".

Montaigne, contudo, diz que o filósofo deve moderar-se: filosofia, com moderação, é bom e traz bons frutos; em excesso, faz com que o homem seja adversário da sociedade, das leis, e até dos próprios prazeres. Há uma razão natural que nos faz viver comodamente. A filosofia, enquanto um pensar sobre a razão, a natureza e a própria "comodidade", em excesso, nos impediria de viver. Diferentemente de Sócrates, para quem a própria vida era o seu filosofar, portanto, dotava-o de características particulares, para Montaigne a filosofia é uma atividade dentre outras, e que não pode ocupar tudo o que ele faz. Para este filósofo, seria possível ter um amigo com quem discordasse em algumas coisas. Para Sócrates, amigo era amigo do conhecimento, por isso, amigo pessoal.

Será que Montaigne não estimaria tanto mais uma pessoa quanto ela também fosse uma filósofa? Ele dedica um ensaio sobre a amizade a La Boetie, de quem foi amigo. O amor e admiração demonstrados no ensaio mostram a importância, para Montaigne, da parceria intelectual. Seu conselho é para o filósofo não ficar intratável, apenas abordável por quem também seja filósofo, e é útil quando travamos relações com quem "pensa diferente". Não é preciso concordar com quem se vai fazer sexo ou bater-papo. Pode-se trocar outras coisas, além de ideias. Mas, sem dúvida, o desejo de unir-se será mais forte se for com alguém a quem você admire.

No Fedro, de Platão, está que nos atraímos por alguém que, além de nos dar a impressão do Belo, lembra-nos do deus a que somos devotos, ou seja, que pareça ter as características que mais valorizamos. E faremos o possível para deixar o amado mais e mais semelhante a esse deus. O amado precisa parecer, e se deixar parecer mais, com o jeito que mais gostamos, em uma pessoa. Nessas condições, o desejo de união perdurará. Sem essa identificação, pode-se até compartilhar momentos, e ter prazer, mas a relação logo termina. Bem, uma relação com identificação e paixão também tem seu fim. O amor faz da razão um instrumento, para iniciar ou manter uma união. Mas pode-se amar alguém por se amar ser racional. Esse alguém o incentiva nisso, e por isso você o ama. E, sem esse incentivo, você jamais conseguirá amá-lo.

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