sábado, 18 de outubro de 2014

Você está confundindo as coisas


"Relações de trabalho não deveriam se tornar íntimas", assim pensamos. Durante a escola, ainda é permitido ser amigo de um colega de sala. Isso é estimulado, mas, à medida que se vai chegando à adolescência, os pais começam a achar ruim que o filho leve um amigo para com ele se trancar no quarto. Que eles fiquem na rua, ou seja, que as regras da cidade balizem o comportamento de um em relação ao outro! No quarto se levará apenas o namorado, ou o ficante. E, se a cidade mostrar aos pais que namorar alguém do mesmo sexo está dentro das regras, a tendência será a de se assustar menos com o namorado do filho entrando no quarto dele.

A partir dos últimos anos de escola espera-se que esteja clara a diferença entre colegas e amigos: colegas são aqueles com quem se convive em algum lugar que não a casa, mas com quem não se conversa coisas íntimas. À medida que a conversa sobre banalidades vai se tornando íntima, o colega vai se tornando amigo. Da escola, faculdade ou trabalho vai-se ao shopping ou ao bar. O assunto fica mais e mais rico, e aumenta o prazer que um sente com o outro.

Nestas conversas há atração corporal. Achamos que a conversa é entre duas bocas que só falam, e falam o que está nas "mentes" de quem conversa. No entanto, ter intimidade com alguém significa compartilhar com ele uma situação de troca de sons e sinais visuais, que comunicam mais do que ideias: trocam-se sugestões, insinuações, também recusas, receios, etc.

A gramática das relações, que estabelece graus de troca e proximidade entre as pessoas, orienta nossas reações às tentativas de aproximação, de alguém, e nossas próprias tentativas de aproximação. Mas, a lotação do quarto da criança era restrita. O número de amigos, de um adolescente, é menor que o de colegas. Também aprendemos que namorar é com um de cada vez (lembrando que o ficar permite variação de parceiro, mas, a princípio, não há muita intimidade com cada um deles. Essa intimidade tende a aumentar, caso os encontros continuem.).

A existência de um namorado não impede que um colega passe a amigo, mas o impede de chegar a namorado. Contudo, pode haver mais intimidade, trocas mais amplas e mais harmoniosas, de uma pessoa com seu amigo do que com seu namorado. Pode-se evitar que a relação com um colega chegue a esse ponto, mesmo que ela seja agradável. Mesmo que não haja um namorado, pode-se não querer ser amigo, muito menos namorado, de determinado colega. Este pode não perceber essa rejeição, e não apenas sorrir para o outro, como chamá-lo para sair. "Ele está confundindo as coisas."

Essa divisão nas relações também distingue se a relação é hetero ou homossexual. Conversa entre homens vemos como isenta de homossexualidade. Entretanto, os gregos e os romanos antigos entendiam que com um bom amigo a intimidade era, de fato, intimidade: ouvia-se alguém com prazer, punha-se a mão em seu ombro, bebia-se com ele, se lhe beijava e com ele se trocava carícias. Era intimidade corporal, sem distinção entre "mente" e físico, portanto, um ambiente em que a fala não se separava do gesto, e a conversa prazerosa de carícias sexuais.

Entre bons amigos há atração. Ou a atração é que leva dois homens a serem bons amigos. Eles podem, contudo, jamais realizar as trocas que gostariam de fazer. Eles faziam essas trocas, quando eram crianças e se lhes permitia ficar no quarto. A partir da pré-adolescência, contudo, o quarto passou a ser lugar de ficar sozinho. Isso até que chega "alguém especial". Mas ele já não existia? A esta altura já aprendemos que esse alguém especial não pode ser o amigo. Só que um monte de filmes, e nossa própria atração, nos diz que não há alguém mais especial do que o amigo.

Aquela gramática é uma regra cultural e histórica. Vivemos a contrariando: sentimos atração por quem acabamos de conhecer ou por colegas. Queremos beijar alguém antes de dizermos qualquer coisa.

Uma pessoa olha desejosa para a outra. Alguém que se vê como heterossexual pode supor um olhar de desejo homossexual, de outra pessoa sobre ele, e se incomodar com isso. Um homem não percebe quando uma mulher lança um olhar de desejo, para ele. As mulheres querem abordar homens. No entanto, o homem ainda se sente governante das investidas amorosas, em público. Por isso ele bobamente se assusta com as mudanças comportamentais que fazem a mulher tomar a iniciativa. E, diante de outro homem, ele procura pistas de que ele seja gay. Caso encontre, fará uma suposição de que será alvo do interesse dele. Isso ele vivia arcaicamente, e era bom. Ele gostaria de receber a cantada do outro. Ele recusa isso, para si mesmo. E agride o outro.

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