domingo, 24 de agosto de 2014

Quando um amor acaba

Relação amorosa é estar unido a alguém e em relação com ele, compartilhando um lugar, uma ideia, uma dança, um sexo, etc. Não é apenas união, pois há uniões que contrariam o desejo de um dos participantes, e não é apenas compartilhar, pois nem sempre se é amigo de um colega de trabalho. Aqui, concentro-me no amor sensual, isto é, no amor que envolve o uso do corpo no dar e no receber prazer. A união e o compartilhar coisas vão fazendo com que os participantes da relação tenham vivências, e estas serão material para cada um pensar sobre si mesmo e no outro. O refletir sobre essas vivências vai fazendo com que se tenha sentimentos. O amor sensual inclui não apenas dividir momentos, mas também o cuidado com o outro e o ciúmes dele. Os momentos que se passa juntos são prazerosos. O ciúmes, por sua vez, é um sentimento que diz que se pode perder o amado, ou melhor, o parceiro-proporcionador das vivências de prazer. Cuidar é querer fazer bem ao outro, e possui um tanto de intenção de fazer esse outro sentir que precisa desse cuidado, e que, então, ele terá que voltar. Diz-se "eu te amo" para ouvir "eu te amo", de volta, "eu permanecerei com você". Estabelece-se uma promessa de manutenção da união-relação, a tentativa de garantir que novamente duas pessoas se juntem para terem atividades, prazer. Há quem diga manter uma relação à distância, com alguém. Moram distantes um do outro. Falam-se diariamente pelo whatsapp; buscam a intimidade, aquilo que é "só deles, e de nenhum terceiro", através de chamadas telefônicas. A voz do outro dá a sensação de que está tudo no lugar. Planejam se reencontrar assim que possível. Com o "eu te amo", se permanecerá à espera, não se envolverá com ninguém mais. No momento em que é dita, a promessa é sincera: realmente se quer fazer com que determinado momento e sensação se repitam. No entanto, assim que acaba o momento, de união e de atividade prazerosa, se está novamente órfão do mundo feito junto. Espera-se que o outro esteja à disposição para um novo encontro (que pode ser online, por telefone, por carta...). No entanto, quando efetivamente escasseiam as coisas que se compartilha com ele, e se aumenta o compartilhamento com terceiros, vão diminuindo as chances de se rejuntar aquele par. Vai ficando difícil manter a promessa. Em "Noite de Almirante", conto de Machado de Assis, o marujo Venta-Grande acabara de desembarcar. Há dez meses teve de deixar Genoveva, na cidade, e partir em missão pelo mundo. O casal de jovens era muito apaixonado, pensava em morar junto. Venta-Grande só viajou depois de ouvir de Genoveva "Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte", assegurando-o de que o esperaria. Ele também cumpriria o contrato. Nenhuma carta poderia ser enviada ou recebida, entre eles, enquanto Venta-Grande estivesse embarcado. Nenhuma forma de estar junto era possível para o casal. Venta-Grande viu muitos lugares, belas mulheres, mas só pensava em Genoveva. Aqueles dez meses eram uma eternidade para um órfão do ambiente de intimidade. Assim que retornou, foi correndo reencontrar Genoveva. Encontrou-a fria, chamando-o de Seu Deolindo. Ela disse ter sofrido a ausência dele semanas, uns dois meses. Foi tocando a vida. Certo mascate da fazenda próxima vivia lhe fazendo propostas, e ela recusou durante um bom tempo, até que, um dia, acordou gostando dele. Genoveva disse-o sem culpa. Estava morando com o mascate. Deolindo não sabia o que dizer, o que sentir, exceto por um fio de esperança de que aquilo fosse mentira. Mostrou a ela os brincos que comprara em Trieste, a custo de economias. Disse que não teve ninguém durante a viagem, que pretendia viver, fazer uma vida com a ela. Estava agora sem chão sob os pés. Ela disse ter sido sincera, mas aquele momento passou e o "coração mudou". Os acontecimentos complicam o cumprimento de promessas. Genoveva passou a ter mais relação, mais em comum com o novo cara do que com Deolindo. Ele quis com que o momento da promessa paralisasse a sucessão de acontecimentos da vida de ambos. Da própria vida, na viagem, ele conseguiu abster-se de viver. Percebia agora o quanto fora ingênuo em manter a promessa, não por Genoveva ser mentirora, mas por querer manter uma relação que já não existia. Deolindo esteve saudoso por uma terra firme que ficara para trás, e deixou de viver os acontecimentos que uma bela viagem, ou a própria cidade, proporcionam.

Viadagem com a linguagem

"Estou deprimido, ando meio down", "sou cheio de manias, tenho TOC", "esse cara é muito louco, um esquizofrênico", "ele vive na dele, feito autista", e outras, frases que são ditas por todos. Elas contém termos oriundos da psicopatologia, mas o sentindo que eles ganham, no uso comum, não é o técnico. O senso comum se apropria dos conceitos para referir-se a diferentes comportamentos, cada termo sendo usado para algo com que nos deparamos no dia-a-dia. Profissionais e familiares podem vir a queixar-se desse uso comum, alegando que ele passa um sentido errado do conceito, ou que usá-lo a torto e a direito leva à discriminação do portador de um transtorno mental. O uso comum daqueles termos tem uma pragmática, que é a da possibilidade de se comunicar que uma tristeza está forte, o alheamento de alguém está fora do normal, etc. Posso dizer que sou doido, mas afirmar que sou como esquizofrênico comunica muito melhor o quanto sou doido. Quem implica com esse uso está com ciúmes de um vocabulário que já não é só dele. Esse espraiamento também ocorre com termos da física, da biologia, etc. Tal forma de comunicação não piora o tratamento social na relação com os pacientes mentais, pois quem participa dela sabe que o sentido com que lida diz respeito àquela comunicação, e quando vê um comportamento que varia do normal e que também não é coberto por esse sentido, sabe que precisa consultar um profissional para entender o conceito e saber como agir. E, arrisco dizer, o uso comum daqueles termos tem a ver com uma fala nossa a respeito de peculiares sentimentos e comportamentos nossos, fazendo com que tenhamos mais condições de entender e acolher o diferente, o sofredor ou o doente. Se as conversas corriqueiras devem ser isentas daquelas palavras, se não podemos mais nos adjetivar, então somos todos "normais". E se nunca saímos do "normal", quem sair dele será tratado com luva e pinça. Porque é a isso que levaria uma assepsia na comunicação.

O exibir-se melancólico e o histérico*

Um melancólico tem o que costumamos chamar de "vida interior rica". Assim é como também entendemos os artistas. O tema recorrente do melancólico é a perda de alguma coisa que lhe servia de norte para a vida. Essa perda, mesmo quando é de um objeto real, tem esse valor simbólico. As ações do melancólico são uma exploração das causas e consequências desta perda. As fantasias, mais do que razões, são a matéria e o produto desta intensa reflexão. Este sujeito fica em seu quarto, criando poemas e pinturas que jamais expõe. Está de tal modo completo nesta bolha, que o olhar do outro gera mal-entendido e incompreensão. Esse olhar é sentido como vindo do nada, pois é externo ao ambiente que o melancólico criou para ele ser melancólico. Um militante político ou religioso são melancólicos que atuam suas fantasias do lado de fora do quarto. São obstinados, na defesa das suas ideias. Rechaçam o que quer que lhes digam. Não escutam nem a uma possível "voz da razão" interna. O melancólico é um extremo do homem moderno traçado pelo freudo-marxismo, qual seja o reprimido em seus instintos, e não sublimado, e que conta apenas com a razão calculadora, estrategista, para agir no mundo. Caso esta razão mostre-se falsa ou insuficiente para cumprir, para o seu usuário, as promessas de uma vida melhor, etc, a repressão dos instintos mostra-se não compensadora. O sujeito, então, cessa de querer usar a razão, e seus instintos agressivos virão com tudo. A agressão, aqui, é tanto contra si mesmo como contra os outros. O por-se-preso, até no uso da razão, é o que ocorre com o melancólico no quarto ou com os apóstolos do "fim do mundo", "dos valores" ou "da família", pregadores da abstenção de riquezas, consumo e sexo. Para Sloterdijk, o homem atual não é o melancólico ou neurótico, mas um ser que se auto-dotou de um equipamento interno para a auto-consulta e auto-desinibição. Ghiraldelli (http://ghiraldelli.pro.br/primordios-da-investigacao-sobre-o-sujeito-peter-sloterdijk/) explica a leitura de Sloterdijk para a cena de Deus criando o primeiro homem: Deus fez uma peça de barro. O oleiro assopra dentro do barro em altas temperaturas, fazendo-o distender-se internamente. Um espaço vazio interno é criado. Deus assoprou pelos buracos das narinas da figura de barro, abrindo-lhe um interior e insuflando-lhe vida. Adão é feito de barro, e com um preenchimento interno volátil, um ar, mas um ar que lhe dá a sensação de possuir o equipamento necessário para ser sujeito, ou seja, para se consultar e por-se em atividade. Um poeta se vê como um criador que utiliza a matéria da sua rica vida interior. Entretanto, esta vida interior pode ser o conjunto de olhadas para as próprias ideias, rearranjando-as, usando a imaginação para desdobrá-las, e ensejando o escrever para si mesmo. Ainda é uma relação de si para si, e o poema parece justificar-se para si mesmo. Sua inspiração é a busca de coisas nesse oco interior que não é tão profundo, é o que está à mão, para uso. Então ele mostra o poema para uma platéia. Dizemos daquele que adora mostrar-se para estranhos, mesmo sem um motivo ou criação para exibir, que é histérico. Diferente de mostrar para um amigo, com quem sente compartilhar da própria interioridade, uma platéia é uma floresta de olhares e de vozes diante da qual só se pode apresentar fazendo-se um tanto surdo ou cego para as reações dos indivíduos. Sua sustentação, e o foco da sua atenção, só pode ser sua interioridade. O melancólico teria toda uma obra para desfilar. O histérico tem a vontade de mostrar-se, em primeiro lugar, e seus motivos mudam de inspiração em inspiração, no compasso de cada preenchimento pulmonar. Para ele não importa se o outro o entendeu, mas se foi platéia, se assistiu. *Texto elaborado a partir do curso sobre subjetividade em Peter Sloterdijk, ministrado por Paulo Ghiraldelli Jr, no CEFA.

Olhando casais

Sempre morei no Rio de Janeiro, capital. Estive recentemente em São Paulo. Andei por muitos trechos de metrô. Em um deles, vi duas mulheres se beijando. Elas terminaram o beijo e voltaram a olhar para a frente. Ainda trocavam carinhos. No Rio, os casais apenas começam a andar de mãos dadas. Fiquei surpreso com o que vi, na cidade grande. As pessoas cruzam complicadas linhas de metrô, passam por muitos estilos de roupa e cabelo, na Paulista, sempre atarefadas. Acompanhadas de um amor, beijam-no, e tocam a vida. No Rio olha-se para o que o outro fará. O personagem de José Mayer, na novela Império, Cláudio Bolgari, namora um homem. A divulgação desta relação, na imprensa, calcula Cláudio, arruinaria sua imagem de marido, pai e empresário. Ele mantém a linha, em público, mas sozinho com seu namorado ele pega fogo. A novela não mostra os beijos, assim como o próprio Cláudio esconde o que faz. Na interpretação agostiniana para o pecado original, quando Adão comeu o fruto proibido, Deus puniu sua desobediência fazendo com que uma parte do corpo dele o desobedecesse. Adão apareceu com o pênis coberto, diante de Deus, de envergonhado que estava. Uma pessoa atrai a outra, que a beija. O beijo explode a excitação. Quando um casal evita se beijar, em público, tendo já experimentado os efeitos de um beijo, está se vigiando para não se exceder. Quando experimentou pela primeira vez o prazer, vinculado à fruiçao do descontrole corporal, e, sabendo que deve controlar-se, em público, mas ainda assim novamente se beija, está se excedendo, cometendo o pecado da luxúria. Os olhos cariocas, acostumados a ver corpos e a avaliar comportamentos, por terem algum tempo sobrando, põem-se a vigiar o autocontrole dos casais. Sungas e biquínis são como folhas de parreira, para estes olhos. Cláudio Bolgari vive como um paulista, mas envergonha-se como um carioca.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

O riso solitário

Manoel Marthos, sociólogo e meu amigo, reparou nos gritos de angústia de Robin Williams, em muitas de suas cenas. Ele parecia pedir socorro. Não era um "por favor, me ajudem", mas um "as coisas não estão bem, para ninguém". O riso dele era triste. O ridículo, algo que merece o nosso riso, é uma situação difícil, ruim, que não precisava ser daquele jeito. O Pateta sofria com o próprio trabalho. Em casa, os sons e vibrações da rua inseriam pesadelos, no seu sono. Ele, sonâmbulo, tropeçava, caía. Alguém caindo num buraco da rua é engraçado. É uma situação difícil vivida por ele, mas o ridículo por que ele passa é responsabilidade de terceiros. Rimos dele, sabendo bem que estamos rindo de qualquer um, pois qualquer um cairia naquele buraco. O riso é para o buraco. Chaplin rolando nas engrenagens é engraçado, porque as fábricas gigantes, e consumidoras de seres humanos, sao absurdas, ridículas. O ator de comédia espera esse nosso riso que bate nele e se projeta na realidade. O riso não muda nada. Os problemas continuam os mesmos. Ou será que mudam? Um operário, um soldado no Vietnã, um transeunte, se bem humorados, talvez sofressem menos. Talvez respirassem, aliviando a tensão. Quem sabe, encontrassem jeitos de escapar, ou até de solucionar, os problemas. Esse ator quer uma platéia que lhe lance risadas. Quando a platéia falta, ele fica impotente, e os problemas ganham força. O rosto de Robin, desesperançoso, atraía nossas emoções alegres e tristes. E ele tornava-se forte, apesar da desesperança. Eu gosto de fazer as pessoas rirem das coisas, ou melhor, rirem da caricatura que faço de mim mesmo, para que, rindo de mim, não seja de mim que estão rindo. Se ninguém curte meus posts, fico triste. Mantenho meu olhar sobre o mundo, porém fico enfraquecido. Mas, se não sou alegre como Robin, também não fico tão triste. E não vi Bom dia, Vietnã, nem Sociedade dos Poetas Mortos (fazer o que, não vi. "Ver, ué!"). Perdi as contas de quanto vi Uma Babá Quase Perfeita. Nesse filme, ele brigava muito com a mulher, e acabou tendo que se separar da sua família. O disfarce de babá permitiu que convivesse com seus filhos. Os adultos não se entendem, não conseguem evitar se ferir e precisarem se distanciar. Seus filhos lhe sorriam, aqueciam seu coração com um amor a que temos por puro, muito porque não é misturado com emoções tempestuosas. O rosto da babá era feliz, mas o do pai chorava, agradecido. Robin não teve outro grande hit, após a Babá. Agora suspeita-se de que se suicidou. Sabia-se que ele passou a beber muito. A alegria e a tristeza dele eram intensas. As emoções, selvagens. Eu não comovo tanto, porque não me aproximo daqueles pólos, quanto Robin se aproximou. Um ator sem platéia é algo triste. Um ator de comédia, solitário, fica completamente indefeso, diante dos demônios da vida.

Escondendo o virtuoso

O lugar de onde vêm esses cozinheiros não importa para a novela Império. O dono do restaurante chique recebe a noiva e a mãe dela para jantar. O novo cozinheiro muda as receitas, e tem obtido ótimo resultado. O dono sempre torce o nariz para algum detalhe tão detalhe que ou foi inserido ali pela imaginação, ou pela mão dele mesmo. A noiva e a sogra sentem orgasmos com a comida. O invejoso critica o prato sem ter comido. Experimenta-o, por fim, e retira-se para falar com o cozinheiro. Enquanto reclamava com ele, a noiva se intromete e lança o merecido elogio. O melhor elogio, contudo, é feito pelo seu olhar. Os êxitos do cozinheiro vêm sendo creditados ao dono do restaurante, que remói a inveja que sente do talento do outro, desconhecido. Terá ele a mesma qualidade que o outro, alguma qualidade? A cena seguinte a esta ocorre na família da mocinha da novela, interpretada pela Leandra Leal. Seu namorado bebia um milk-shake feito por ela. Ela diz que usou banana para dar o efeito do "grossinho". Esse efeito deveria ter sido alcançado com o uso de sorvete. Entretanto, eles são os pobres da novela, de modo que sorvete é luxo. O namorado elogia a bebida. O modo com que ela fora preparada não é escondido. Não há desconhecidos ali, porque não há desiguais. O saber da namorada é reconhecido. A terceira cena alimentar, ocorrida logo na sequência das anteriores, mostra um jantar da família da personagem de Lília Cabral. O filho e a namorada dele dizem que a comida está muito boa. A cozinheira deles jamais apareceu na novela. Os pratos pulam da cozinha para a bandeja da mulher que os serve. Lília não chega a experinentar. A preocupação constante dela é proteger o Império, coisa a que o Comendador volta e meia expõe a risco. O Comendador nunca mudou o próprio jeito de capiau. Gosta dessa sua marca. Tem uma linda amante, pois seu sangue ainda circula. A esposa que tem é fria. Ela vem de lugar nenhum, não quer saber de onde vem a comida que come, e quer manter à distância a pessoa que deseja se apresentar à família dela: a filha nascida de um antigo namoro do Comendador, quando ele não era Comendador e pegou a mulher do irmão. Na novela, há os que ocultam os outros, num esforço que os deixa constantemente tensos; e há esses outros, de origem mantida encoberta, cujas virtudes deixam-se sentir para fora do manto do encobrimento.

O cão tornado neurótico

O cão ataca quem ele próprio não conhece. E defende, e é carinhoso, com quem é do seu conhecimento (inspiro-me, aqui, em uma colocação de Sócrates, em A República, de que o cão seria um animal filosófico, por basear-se no conhecimento, mais especificamente o conhecimento que tem de um homem, ao agir em relação a ele). Ele sabe os hábitos, o jeito e as emanações físicas dos humanos com quem convive. Sabe do caráter deles, melhor do que ninguém. Vivendo com alguém que não se deixa cheirar, fica acabrunhado, solitário. Recebendo carinho, e podendo ficar no mesmo ambiente que os humanos conhecidos, sente-se confortável e alegre. Sente-se alegre porque lhe é permitido conhecer. Buscar conhecer é sua inclinação natural. Gosta de ser apresentado a novas pessoas, através do seu humano. O homem conhecido orienta aqueles que ainda são estranhos ao cão a oferecerem a mão para ser cheirada. Um estranho que se aproxime do seu humano conhecido deixa-o alerta. Se impedido de exercer sua inclinação natural, se punido em sua curiosidade, entristece-se. O resultado não é nada bom: passa a defender neuroticamente sua comida, sua casa, seu humano. Ao ser rebaixado por este último, não ousa reclamar, revidar a punição castradora: voltará sua raiva contra todo o desconhecido. Antes um filósofo, o cão foi tornado incapaz de conhecer. É agora um animal, qualquer coisa curvada e temerosa de sair da toca. Recebe notícias do que ocorre do lado de fora. Late para que os seus humanos não saiam de casa. Vendo algo mexer-se do lado de fora da porta, late ensurdecedoramente. Avisa para que os humanos resgatem logo seus filhos do meio da massa. O mundo não é para ser vivido, não é para ser pensado, não é para ser conhecido, não é para ser transformado, não é para ser criado. O mundo acaba no canil. Nada de novo pode ser prometido. Quem está envolvido nessas coisas, que também seja preso, castrado. Fica-se indiferente se os outros homens desumanizam o homem que se exprime. Viviane Mosé fala no rádio, para taxistas e donas de casa. Alerta os pais que professores de filosofia e de história corrompem menores, tiram-os dos valores corretos que os fazem sempre voltar para casa. Pondé tira o crédito de qualquer esforço de melhoria do mundo. Ingênuos que sejam, repondo antigas promessas, os manifestantes têm o heroísmo de, sozinhos, oporem-se à mídia, à polícia e à política. Quem não quer encontrá-los para com eles conversar, e então conhecê-los, chamam-os de vândalos, e às manifestações de guerras. Isola-se, assim, o manifestante que fez da cidade o seu ambiente de fala, de conversa e, talvez, de busca de conhecimento. Os manifestantes podem perder suas lutas, mas um pequeno mundo é criado a cada movimento novo na cidade. A criação destes novos mundos está para ser conhecida. Os empalidecidos, isolados na surdez, continuarão sem saber de nada.

Ele quer fazer parte dela

Acontece de um homem querer fazer parte da vida de uma mulher. Ele não percebe isto, com esta clareza. A um aceno ou pequeno gesto dela, ele a cerca. Escuta-a infinitamente. Pensa poder fazer tudo para ajudá-la. Não a espera pedir, nem sentir necessidade: adianta-se a ela. No filme Homens Brancos Não Sabem Enterrar (White Men Can't Jump, Ron Shelton, 1992) a personagem de Rosie Perez, na cama com o de Woody Harrelson, comenta que está com a boca seca. Woody levanta-se, e ela briga: "eu disse que estava com a boca seca, não pedi para você pegar água para mim". Por que o homem quer fazer as coisas pela mulher? Ele é um órfão da placenta, doido para voltar a participar da mulher. Ele se cansa, suporta situações ruins, para ter uma nova chance de se sentir junto dela. Gosta de um pouco de resistência. Gosta quando, após isso, ela se abre para que ele tente agradá-la com carícias e preenchimentos. É engolido e cuspido. Se ela mostra estar gostando, ele se sente no melhor dos mundos. Não, ele volta a pertencer a um mundo. Ela o abraça e ele acolhe quem o acolheu. Mas ele não aguenta muito tempo de conchinha ou de abraço deitado, e vira para o outro lado. O homem é um ser desgarrado à procura de uma carne quente e úmida. As situações difíceis, ele diz que não são nada. Se ele é recompensado, ótimo. Com o prosseguimento da relação, o corpo da mulher já não é novidade. Ele agora espera ser aceito pelas ideias que tem, pelas coisas que faz ou pelo dinheiro que pode levantar. Desde o começo ele mostrou essas coisas. Não importava se as ideias não combinavam. A profissão era melhorada pela conversa, ou inventava-se alguma ocupação. O dinheiro servia a um gasto bem calculado, atendendo ao mínimo e dando um luxo por noite. Ela nem pedia, ele que fazia questão de mostrar. Aos poucos, o luxo ia deixando de existir. A profissão parecendo pouco promissora. Mas, a esta altura, ele já fora aceito, entrou no coração, no corpo dela. As amigas aprovam-no, e o sogro não inspira vergonha. Ela então reclama daquelas outras coisas, mais e mais. Diz que ele não tem o bastante para ser aceito. Ele pula em cima dela, mas depois a insuficiência dele volta a ser falada. Ele percebe que é interessante para outras mulheres. Troca de mulher, ou mantém a que acha que tem. Pode passar a vida inteira ouvindo que é insuficiente, encontrando um conforto no sofá, no chefe, nos amigos, ou na própria mulher que, afinal, precisa fazer sexo. Pode ser uma boa ideia terminar uma relação, ou parar de investir naquela nova mulher, ou, ainda, parar de visitar a ex-namorada. São ideias que vêm, após ele perceber que ele mesmo está querendo é participar, não deixar que a vida da mulher, tão interessante, passe sem ele. Ele torna-se capaz de sair correndo da casa dela. Mas se ela chamar, ele resiste?