terça-feira, 12 de agosto de 2014

O cão tornado neurótico

O cão ataca quem ele próprio não conhece. E defende, e é carinhoso, com quem é do seu conhecimento (inspiro-me, aqui, em uma colocação de Sócrates, em A República, de que o cão seria um animal filosófico, por basear-se no conhecimento, mais especificamente o conhecimento que tem de um homem, ao agir em relação a ele). Ele sabe os hábitos, o jeito e as emanações físicas dos humanos com quem convive. Sabe do caráter deles, melhor do que ninguém. Vivendo com alguém que não se deixa cheirar, fica acabrunhado, solitário. Recebendo carinho, e podendo ficar no mesmo ambiente que os humanos conhecidos, sente-se confortável e alegre. Sente-se alegre porque lhe é permitido conhecer. Buscar conhecer é sua inclinação natural. Gosta de ser apresentado a novas pessoas, através do seu humano. O homem conhecido orienta aqueles que ainda são estranhos ao cão a oferecerem a mão para ser cheirada. Um estranho que se aproxime do seu humano conhecido deixa-o alerta. Se impedido de exercer sua inclinação natural, se punido em sua curiosidade, entristece-se. O resultado não é nada bom: passa a defender neuroticamente sua comida, sua casa, seu humano. Ao ser rebaixado por este último, não ousa reclamar, revidar a punição castradora: voltará sua raiva contra todo o desconhecido. Antes um filósofo, o cão foi tornado incapaz de conhecer. É agora um animal, qualquer coisa curvada e temerosa de sair da toca. Recebe notícias do que ocorre do lado de fora. Late para que os seus humanos não saiam de casa. Vendo algo mexer-se do lado de fora da porta, late ensurdecedoramente. Avisa para que os humanos resgatem logo seus filhos do meio da massa. O mundo não é para ser vivido, não é para ser pensado, não é para ser conhecido, não é para ser transformado, não é para ser criado. O mundo acaba no canil. Nada de novo pode ser prometido. Quem está envolvido nessas coisas, que também seja preso, castrado. Fica-se indiferente se os outros homens desumanizam o homem que se exprime. Viviane Mosé fala no rádio, para taxistas e donas de casa. Alerta os pais que professores de filosofia e de história corrompem menores, tiram-os dos valores corretos que os fazem sempre voltar para casa. Pondé tira o crédito de qualquer esforço de melhoria do mundo. Ingênuos que sejam, repondo antigas promessas, os manifestantes têm o heroísmo de, sozinhos, oporem-se à mídia, à polícia e à política. Quem não quer encontrá-los para com eles conversar, e então conhecê-los, chamam-os de vândalos, e às manifestações de guerras. Isola-se, assim, o manifestante que fez da cidade o seu ambiente de fala, de conversa e, talvez, de busca de conhecimento. Os manifestantes podem perder suas lutas, mas um pequeno mundo é criado a cada movimento novo na cidade. A criação destes novos mundos está para ser conhecida. Os empalidecidos, isolados na surdez, continuarão sem saber de nada.

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