quinta-feira, 30 de junho de 2016

A metáfora de Sansão


Palavras colocam-nos em certos climas. E estão acima do nosso entendimento. Determinam o que fazemos e o que sentimos. Os esforços dos homens por conhecê-las por completo, o seu sentido, são em vão.

Os israelitas oscilavam entre a adoração a deuses, o que lhes enfraquecia enquanto nação e os expunha à escravidão, e o refúgio em Javé. Repetiam ciclicamente o pecado, o castigo, o retorno à consciência dos feitos de Javé pela liberdade deles e o clamor pelo auxílio Dele.

Cada geração falhava na tarefa de quebrar este ciclo, o que seria conseguido caso eles se lembrassem dos sofrimentos e das lutas dos seus antepassados, e prosseguissem com as orientações de Javé, que levam à liberdade e à vida.

Um dos juízes de Israel, homens a serviço desta busca por consciência, foi Sansão. Havia quarenta anos os israelitas eram dominados pelos filisteus. Um homem de nome Manué não possuía filhos: sua mulher era estéril.

"Você é estéril e não tem filhos, mas ficará grávida e dará à luz um filho", disse a ela um anjo de Javé. O anjo também disse a ela para jamais passar a navalha na cabeça do menino, pois desde o seio da mãe ele será consagrado a Javé.

Do começo ao fim de sua vida, Sansão cumpre um propósito. E nada, nem mesmo ele, pode cortar de si mesmo algo tão insignificante quanto cabelos. O propósito de Sansão, o sentido da sua vida, foi transmitido à mãe dele pelo anjo de Javé. As palavras do anjo não são claras, não são explicadas. Porque não cortar o cabelo? Como ela ficará grávida?

Ela foi contar ao marido: "Um homem de Deus veio me visitar. Pela sua aparência majestosa, parecia um anjo de Deus. Eu não perguntei de onde ele veio, nem ele me disse o seu nome." Manué buscou um encontro com o anjo. E o encontrou. "'Qual é o seu nome, para que possamos agradecer a você, quando suas palavras se realizarem?' O anjo de Javé retrucou: 'Por que você está querendo saber o meu nome? Ele é misterioso'".

O caminho de Sansão, feito por suas decisões, seguiu, sem que ele ou qualquer pessoa adivinhasse aquele propósito de Javé. Eram palavras cujo sentido não podia ser apreendido. Um dia, indo a Tamna, Sansão encontrou uma jovem. Quis casar-se com ela. Os pais dele lamentaram que escolhida do filho fosse moça filisteia.


Próximo a um vinhedo de Tamna, Sansão deparou-se com um leaozinho, que rugiu ao vê-lo. Com facilidade e usando as próprias mãos, Sansão despedaçou o animal. No dia em que se casaria, Sansão tornou a passar próximo daquele vinhedo. Encontrou a carcaça do leão. Nela muitas abelhas haviam feito um ninho. Sansão recolheu um punhado de mel e o foi comendo pelo caminho.

Na casa da noiva havia um banquete. Aos presentes, Sansão propôs uma adivinhação: "Do que come saiu comida, e do forte saiu doçura." Trinta peças de linho e trinta roupas de festa seria o prêmio daquele que adivinhasse, traduzisse as palavras enigmáticas em palavras inteligíveis.

Sem conseguirem adivinhar, alguns dos presentes no banquete disseram à noiva de Sansão que ela deveria fazê-lo dizer a resposta ou eles ateariam fogo nela e na casa de seu pai. Ao choro dela, Sansão responde que nem aos próprios pais ele dissera.

Após muito pranto, a moça enfim obtém a resposta e, ao saberem dela, os homens contam-na a Sansão. Ele então vai à cidade de Ascalon, mata trinta homens, tira-lhes as roupas e as dá para os que disseram a resposta. Cheio de raiva, Sansão retorna à casa do pai.

Dias depois, Sansão torna a visitar a sua mulher. O sogro, porém, não lhe deixa entrar, dizendo que dera a filha a um daqueles homens do banquete, pensando que ele não mais gostasse dela. O sogro ofereceu-lhe a filha mais nova, dizendo-a mais bonita.

"Desta vez não sou culpado do mal que vou fazer aos filisteus." Ele pega trezentas raposas, amarra-as em pares, pelos rabos, e em cada par amarra uma tocha acesa. O fogo acabou com as plantações dos filisteus. Os filisteus identificaram o culpado, e atearam fogo na mulher a quem Sansão desejava, e também na casa do pai dela. Sansão matou-os todos.

Sansão lançara palavras misteriosas para dizer o que havia ocorrido com ele. Despertara a cobiça e a maldade dos filisteus. E o que os filisteus fazem justifica o massacre perpetrado por Sansão. Tal era o propósito de Javé, a fim de ajudar Israel. E essa ajuda estava sendo providenciada sem que lhes parecesse ser obra Dele.

O povo, então, poderia começar a ver a si mesmo como capaz de realizar ações que cuidassem da justiça e do estabelecimento gradativo de uma situação de maior liberdade para eles. De dependente de Javé, o povo passaria a agente dos seus próprios propósitos, tendo em Javé um norte.

Três mil filisteus apareceram no rochedo onde estava Sansão, querendo levá-lo preso. Os homens de Judá questionaram-no sobre o que ele fez aos seus dominadores. Amarram-no com duas cordas novas e entregam-no aos filisteus.

Os filisteus o recebem em festa. As cordas que amarravam Sansão ficaram como fio de linho queimado e, pegando uma queixada de jumento, que estava perto, Sansão matou mil daqueles homens.

Tempos depois, Sansão conheceu uma mulher chamada Dalila. Os chefes dos filisteus não demoraram a aliciá-la. No próximo encontro que teve com Sansão, Dalila passou a pedir que ele dissesse o segredo de sua grande força, e como ele deveria ser amarrado para ser dominado.

Aqueles homens e Dalila queriam que tudo fosse dito, de modo a que eles pudessem tomar providências em relação a Sansão. Do jeito que as coisas estavam, a explicação do que Sansão era capaz de fazer estava encerrada em uma boca que não falava com qualquer homem e, quando o fazia, com homens bons, era em um encadeamento de palavras cujo sentido lhes escapava.

Por três vezes Sansão disse a Dalila de que modo ele deveria ser amarrado, para ser dominado. A cada vez, ele dizia um modo diferente. E ela o testava, chamando filisteus para pegá-lo. Em todas as vezes, Sansão conseguia facilmente livrar-se das amarrações.

Dizendo duvidar do amor dele, e insistindo incessantemente, Dalila consegue ouvir de Sansão que se uma navalha passasse na cabela dele o tornaria fraco como qualquer homem.

Os filisteus deram dinheiro a Dalila. Cortaram todo o cabelo de Sansão, e a força dele desapareceu. Ele nada conseguiu fazer contra seus atacantes, que o prenderam e lhe furaram os olhos. Para ele, Javé o abandonou.

Sansão foi preso com duas correntes de bronze e posto na prisão, para girar a pedra do moinho. Os chefes dos filisteus organizaram uma grande festa, com um sacrifício ao deus Dagon. "Nosso deus nos entregou nosso inimigo Sansão, aquele que devastou nossas terras e multiplicou nossos mortos."

Chamaram Sansão para trazer-lhes divertimento, dançando, cego e seminu, entre as duas colunas principais do templo. Sansão pediu ao moço que o transportava que o pusesse num lugar onde ele pudesse se apoiar nas colunas. O templo estava repleto de filisteus, incluindo seus chefes. Eram ao todo três mil homens, vendo Sansão dançar.


Sansão invocou a Javé que permitisse que, de um só golpe, ele pudesse vingar-se dos filisteus. "Que eu morra junto com os filisteus!" O cabelo de Sansão já havia crescido um bocado. Ele empurrou as colunas com toda a força, "Desse modo, ao morrer, Sansão matou muito mais gente do que tinha matado durante toda a sua vida." Sua vida levou a isso, a cumprir as palavras do anjo.

Sansão era forte e doce, como um leão cheio de mel. Tomando por Lacan, a partir do seminário "A função criativa da palavra", essa metáfora não pode ser entendida como uma comparação entre Sansão, o leão o mel: toda metáfora emerge implicando mais do que se espera dizer, por isso com essa metáfora estamos a dizer que a força de Sansão surpreende por ele ser um homem bom, e que é surpreendente que ele permaneça doce por toda a vida, mesmo sofrendo e perpetrando violentos ataques.

A ambiguidade de Sansão está na violência que se anula pela doçura do homem, e na doçura de um homem que morreu por uma grande vingança pessoal e do próprio povo. Cada elemento, aí, ganha sentido no interior do mundo simbólico que envolve Sansão."Cada vez que estamos na ordem da palavra, tudo que instaura na realidade uma outra realidade, no limite, só adquire sentido e ênfase em função dessa ordem mesma" (LACAN. O seminário I, p.310).

A metáfora do leão e do mel emerge ao ser de Sansão. Ele fez esta associação, e presentou a quem o ouviu uma confissão dele mesmo. Os símbolos trazidos por ele são o ambiente no qual ele emerge como homem. Ele invoca a si mesmo quando diz aquelas coisas. Traz a si mesmo à tona, faz-se comunicável e inteligível.

As palavras, porém, são coisas que se lançam aos homens. O que elas significam é o que eles creditam a elas. Elas, em si mesmas, são anteriores a tudo. Os homens nascem num ambiente simbólico. E esse nascimento, diga-se, com Sloterdijk, começa a ocorrer quando ainda estamos no útero.

Sem a dimensão simbólica, toda comunicação seria a transmissão mecânica de uma informação: eu te digo x, e você entende x; caso você entenda y, identifico o erro e digo x de uma outra maneira. Nossa comunicação não é assim. Ela é cheia de mal-entendidos, ambivalências, ironias e meias-verdades.

Algo mais do que um sentido está em jogo no que dizemos. O que dizemos sempre nos envia ao próximo ato de dizer mais, navegando pelo simbólico. Seja humano, seja divino, esse ambiente é misterioso para aquele que, mesmo tomando-se como entendedor de tudo, é uma criação. Uma criação que, tudo bem, é do próprio ser a quem chamamos de indivíduo, mas que se dá com a sua parceria com outros seres.

Nos fazemos a partir desse ambiente de co-criação, entre homens, incluindo ou não Deus. Expressamo-lo em palavras, metáforas.

terça-feira, 28 de junho de 2016

Sem futuro à vista


No livro de Juízes, do Antigo Testamento, tomamos conhecimento de Galaad e de Jefté. Galaad teve filhos com sua esposa, e um filho com uma prostituta. Este era Jefté. Jefté fora expulso da tribo de Galaad pelos próprios irmãos. "Você não pode participar da herança do nosso pai, porque você é filho de outra mulher." Anos depois, Jefté havia se tornado um valente guerreiro.

Aconteceu de o povo amonita atacar Israel. Os anciãos de Galaad acorreram a Jefté, para que os comandasse na guerra. Jefté relembrou-os do ódio do qual ele fora vítima. Os anciãos ofereceram-lhe a posição de chefe não apenas do exército, como de todos os habitantes de Galaad. Jefté aceitou, mas caso Javé o ajudasse: "Se Javé os entregar (os amonitas) na minha mão, então eu serei o chefe de vocês".

Jefté enviou emissários ao rei dos amonitas para perguntar o motivo do ataque. O rei justificou-se dizendo que Israel, ao vir do Egito, apoderou-se de suas terras. Jefté reenviou os emissários, para que dissessem ao rei o percurso de Israel pelo deserto. A história dizia que, quando Israel chegou a Edom, enviou emissários pedindo ao rei deste lugar que os deixassem atravessar a sua terra. Não obtiveram qualquer resposta. Israel então contornou Edom e, ao chegar na fronteira de Moab, enviou emissários ao seu rei, pedindo que os deixassem atravessar a terra. Também foram ignorados. Israel, então, seguiu viagem.

Ao chegarem à fronteira de Seon, emissários também foram enviados ao rei deste lugar. Como resposta, o rei de Seon reuniu seu exército e atacou Israel. Javé fez com que Israel o derrotassem e tomassem posse de sua terra. Após narrar este percurso, Jefté pergunta ao rei dos amonitas se ele terá coragem de tentar expulsá-los daquelas terras, dadas a eles por Javé. O rei nada responde. O espírito de Javé desce sobre Jefté e este pede para sair vitorioso daquela guerra. Em troca, Jefté promete entregar como holocausto a Javé a primeira pessoa que sair da porta de sua casa para recebê-lo depois da guerra.


Jefté derrotou o exército dos amonitas, e Israel então os dominou, tomando posse das suas vinte cidades. Jefté voltou para casa. Sai pela porta, dançando ao som dos tamborins, sua filha única. "Ai, minha filha, como sou infeliz! Você é a minha desgraça, porque eu fiz uma promessa a Javé e não posso voltar atrás". A filha apenas lhe pede que a deixe andar por dois meses pelos montes, na companhia de amigas, chorando porque morrerá virgem. Dois meses depois, a moça volta para casa, e a promessa é cumprida.

Dentre os comandantes que Israel tivera até então, seja o sacerdote Moisés ou o guerreiro Josué, nenhum fizera promessas a Javé. Pelo contrário, Javé que lhes prometeu uma terra que emanasse leite e mel. Israel deveria lutar com coragem para tomar posse da terra, e seguir com confiança e dedicação os preceitos de Javé, adorando-o unicamente, de modo a efetivamente conquistarem seus ambientes. Com isso, garantiriam sua herança, e Javé teria sua vontade também satisfeita. O propósito que estava em jogo, aqui, era o de Javé. Mas este propósito era o da libertação do homem.

Após a morte de Josué, e dos anciãos que acompanharam suas batalhas contra inimigos e para fazer Israel manter os preceitos de Javé, o povo passou a adorar os deuses dos cananeus, povo a que Israel não exterminara. Javé puniu Israel, pela traição. Ou o que houve não foi por punição divina, mas o resultado lógico de se adorar outros deuses, ou melhor, outros preceitos: Israel perdeu guerras e foi submetido ao poder de muitos reis. Após alguns anos de escravidão, Israel implorou o perdão de Javé que, então, designou um juiz para informar-lhes de qual havia sido o seu erro perante Javé.

Israel reconheceu o próprio erro, voltou a depositar confiança em Javé e livrou-se da escravidão. Contudo, com a morte de cada juiz, Israel repetia a adoração de outros deuses, a recaída na escravidão, o sofrimento e o novo pedido de perdão. Isso tornou-se um ciclo sem fim.

Jefté, portanto, encontra Israel gerações depois da promessa inicial de Javé. Gerações depois do sonho deles. Eles não possuem mais aquela promessa guiadora. Sua vida alterna quietude e sofrimento, outros deuses e Javé. Por ainda não possuírem uma tradição de rememoração do sofrimento das gerações passadas, e dos seus feitos apoiados por Javé, Israel descamba para deuses que requerem menos regras sociais e regras de comportamento para a preservação das posses dos indivíduos, inclusive das vidas deles, do que Javé requer.

Vivendo com menos regramento legal e moral, Israel acaba permitindo que ocorram relações abusivas e, no limite, fica exposto à escravização. A civilização exige regras, para que o homem não viva sob a lei do mais forte. Para escapar do sofrimento, Israel recorre a Javé. Recorre desesperadamente, sem esperança. Israel quer resolver uma situação concreta. Não há preservação de uma tradição e de preceitos com vistas a alcançar algo de bom no futuro.

Jefté não teve defesa contra a expulsão que sofreu, quando criança. Ele não teve a promessa que, por exemplo, recebeu Ismael, filho de Abrãao, quando sua mãe, Agar, serva de Abrãao, fora expulsa pela esposa dele, Sara: Javé prometeu que Ismael viria a ser o pai de uma grande nação. Como um guerreiro sem esperança, Jefté, ao ser chamado para proteger aqueles que o expulsaram, pensou apenas em ter poder sobre eles, vingar-se.

Neste momento, ele não pensou na sua frutificação, na sua filha, naquilo que levaria sua história adiante. Ele amputou o próprio braço, o braço do presente que se esticava ao futuro, para fora daquele tempo de paz sem esperança e de sofrimento humilhante. Reproduziu em sua vida o ciclo por que Israel vinha passando, de salvar-se dos grandes problemas do presente, sem cuidar-se, que significa conhecer o próprio passado e sonhar com um futuro melhor.

sábado, 25 de junho de 2016

Um presente para você

Durante uma aula, em um curso de graduação de uma universidade particular, o aluno exige que o professor novamente lhe explique a matéria, pois "paga a universidade, então paga ao salário dele". O filósofo alemão Peter Sloterdijk, na entrevista "What does a human have that he can give away?"(http://www.academia.edu/9185150/What_Does_a_Human_Have_that_He_Can_Give_Away_-_interview_with_Peter_Sloterdijk_2013_), afirma que em nossa cultura de produção em massa de diversos bens, como por exemplo a educação ou os alimentos, somos todos consumidores. E somos praticantes de uma ética erótica, que é a do inesgotável desejo de ter algo que sempre parece nos faltar. Somos como bocas abertas e carentes que vivem querendo que algo lhes caia dentro.

No caso da universidade particular, temos dinheiro. Então nos vemos no direito de que algo seja depositado em nossas bocas. Esticamos o braço para dar o dinheiro, e queremos conhecimento em troca. A relação é de consumo, não parece haver aí qualquer preocupação com desenvolvimento pessoal, enriquecimento espiritual. Diferente disso ocorreria em uma universidade pública, por exemplo, em que não haveria troca de dinheiro por conhecimento: o aluno veria a si mesmo como tendo estudado e passado em um difícil concurso, para estar lá. O valor pessoal dele estaria provado, e ele o apresentaria ao professor para ser visto por ele como alguém que mereceria assistir a sua aula.

Na descrição da situação da universidade pública eu usei o futuro do pretérito nas ações. Fiz isso porque estes verbos, para acontecerem, assim como o desenrolar daqueles fatos, requerem que os alunos cheguem àquela situação como tendo algo pessoal a dar para a universidade, para ser trocado pela aula. Eles não poderiam chegar como pessoas a quem falta algo, e que disfarçam isso com dinheiro. Mas não é assim que ocorre pois, entre nós, só chega à universidade quem fez bom ensino médio, o que envolve dinheiro. Então, este aluno também só é capaz de encarar uma aula como uma situação de consumo, proporcionada a ele não por ele ter algo de especial. Este aluno também é capaz de dizer que paga o salário do professor, por pagar impostos.

Segundo Sloterdijk, impostos são direcionamento de dinheiro a uma instituição primeiramente interessada em manter a si mesma, e cujo uso deste recurso em serviços públicos ou não é exatamente o que muitos gostariam que fosse, ou não é o mais eficiente. O fundo recolhido através dos impostos torna-se um dinheiro mal-utilizado, e utilizado sem o total conhecimento e aprovação do contribuinte. Deste modo, ninguém vê a si mesmo como contribuidor ao funcionamento de uma universidade pública. Essa instituição é gerida sem a participação ou ao menos o conhecimento dele.

Poderíamos tentar considerar, neste momento, os dons espirituais dos jovens como um certo bem que eles dirigem à universidade. E observamos isso. Mas também observamos a substituição da troca entre dom espiritual e boas aulas pela troca entre dinheiro e conhecimento. A troca de dons espirituais, que podem ser bom nível cultural, boa educação, bons valores, etc, por boas aulas requer que se esteja não em um clima erótico, de sensação de que algo falta e por isso precisa ser pego, mas em um clima timótico.

O thymos foi trabalhado principalmente por Platão, em A República: o homem pode ter um dentre três tipos de alma, que são a alma com a aptidão para desenvolver o intelecto, a propensa aos apetites e aquela que pode e deve desenvolver seu thymos. Na psicologia platônica, que pertence à cultura grega antiga, o thymos são os derivantes da ira, que vão desde o orgulho até a cólera. O timótico seria o disciplinado, treinado e orgulhoso soldado da República. Ele reconhece os seus talentos, regozija-se por realizar bem a sua função e propensão de alma. E ele quer o reconhecimento dos outros. Oferece seus talentos aos seus concidadãos, e em troca quer cumprimentos. Timótico também é o intelectual, que elabora uma ideia e se sente auto-recompensado ao fazê-lo.

Este aspecto psicológico encontra-se entre nós pouquissimo desenvolvido, visto que nem mais ouvimos falar nessa palavra (você já tinha ouvido falar em thymos?). Não damos valor ao orgulho, não temos muita clareza do que seja fazer algo bem-feito ou realizar uma boa ação, e sentir prazer com isso. Sloterdijk nos fala de empresários, nos EUA, que fazem grandes doações em dinheiro a Universidades. Não estão trocando dinheiro por conhecimento, mas por incremento desenvolvimental de comunidades. E o fazem em troca de reconhecimento social, mas sobretudo por orgulho próprio.

O filósofo sugere que comecemos a considerar incentivos a uma cultura de doações voluntárias. Impostos, coercitivos, têm sido acompanhados de perda de noção dos indivíduos quanto ao uso que é feito do dinheiro deles, e isso leva à falta de sentido que o funcionamento de uma universidade tem para eles. Doações, ao contrário, são uso dirigido de dinheiro, feito por quem sente que tem algo a dar e que gera tão bons resultados em universidades, hospitais, etc, quanto geram bem-estar aos doadores.

Uma cultura mais timótica significaria estudantes, que não são empresários, apresentando-se como aprendizes. A palavra aprendiz sugere alguém em formação tanto em uma área de saber e para exercer uma profissão, quanto integral, ou seja, cultural e comportamental. E todo aprendiz olha com orgulho para si mesmo. E sente que este é o mesmo olhar que o professor, seus pais e, posteriormente pessoas desconhecidas, lançarão para ele.

Estudantes, professores, pais, governantes deveriam buscar fazer algo bom, digno de orgulharem-se. Numa cultura assim, veríamos a nós mesmos como pessoas dotadas de algo especial que pode ser oferecido ao mundo. E este algo, na verdade, só o conhecemos ou o temos se o damos, como diz Sloterdijk, citando um dito de Lacan a respeito do amor: "você só o tem passando-o adiante".

Dar o que você tem de bom é dar essa mesma coisa de presente para você mesmo.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Vontades divididas


Estou esperando o bolo de aipim como coco terminar de assar. Enquanto o preparei, ouvia Belchior. Não se faz mais músicas como ele, na MPB. Ele fala muito sobre beijar a menina dele. Sobre ver a cidade, de paralelas que nunca se encontram. E ele volta ao coração nordestino, com quem via a sessão das cinco.

Descasquei e ralei mais de dois quilos de aipim, mais um coco, pensando em deixar o bolo bom. Amanhã meus colegas de trabalho deverão elogiar. Pensei nas minhas meninas, que também adoram bolo, comendo pipoca com coca, no quarto. Ando fazendo muitos bolos para levar para o trabalho. Ando pensando muito nos colegas. E minhas meninas, a quem já muito dediquei minhas comidas, há um tempo que não ganham nada.

Cada ralada era um pensamento neles e nelas. E pensamento na ralada, para não pegar no dedo. Quem come pensa coisas particulares. Eu, cozinheiro, suponho que quem come pense na comida, em mim. O tanto que pensei na sensação que terá quem come, é o tanto que, na hora em que estão comendo, atribuo de pensamento deles voltando sobre mim.

Freud falou que a libido, nossa energia amorosa, é hora jogada para os objetos, ora jogada para o eu. Amamos nosso eu como queremos que os outros nos amem. Amamos os outros, para que eles nos amem de volta. O espelho é bate-volta.

A vontade do eu está comandando esses bolos, feitos, a cada etapa, pensando nos outros e em mim, mas sempre em mim. Quero reconhecimento, que nunca se satisfaz. Agostinho disse que nossas vontades do eu nunca se satisfazem. A alma lança um fraco comando ao corpo, e ele já responde, querendo cozinhar.

Como a sede das vontades, a alma, pode ter tanto poder sobre o corpo? E como a mesma alma não consegue exercer sua vontade sobre si mesma? Agostinho faz essas perguntas, esperando que sua alma consiga não perder-se nas inúmeras vontades do eu e do corpo. Ele quer que sua alma possa ordenar a si mesma para que busque as coisas de Deus, que proveem satisfação que não passa.

Tenho na lembrança os elogios que já recebi. Ainda hoje eles me servem. Estão durando, no meu eu. Mas, é verdade, Agostinho, que eu o quero de novo. Não digo que queira mais pois, quando faço algo pelo elogio, sinto que estou vazio dele, apesar de um dia ter estado cheio. Digo que quero de novo, como se fosse a primeira vez.

A insatisfação do homem o faz sentir as coisas como na primeira vez: o sabor do bolo, dos elogios, dos sorrisos, da música. Belchior cantava sobre o muito que um dia viveu. Apesar de querer essas coisas de volta, e estar cheio de lembranças, ele está vazio delas. Está vazio pois é capaz de senti-las como novas.

Meu eu é cheio de lembranças e vontades. Quer repetir os sucessos que um dia teve. Mas ele também está vazio pois, justamente por sua insatisfação crônica, toda a sensação do passado foi consumida. E ele quer as sensações de novo, por não as tê-las mais. Ele está com todos os sentidos prontos para novamente comer o bolo, e escutar falarem com ele.

P.s.: Dessa vez, felizmente, a quantidade de massa não coube na forma, e sobrou para uma fornada para as minhas meninas. Eu estava dividido entre a vontade de agradar os colegas e a vontade de agradar as minhas meninas. Eu estava dividido, eu era dois, duas vontades. Agora, conseguirei satisfazer ambas vontades. Meu eu, que é ao menos dois, eu o sentia como um dividido. Mas não sentirei mais minha divisão. Terei a sensação de que sou mesmo um.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Corpos vivos e corpos mortos



Em muitas escolas, à entrada, as crianças cantam o Hino Nacional. A professora exige que ponham a mão sobre o próprio coração. Alguns dão uma dançadinha, cantam um pouco enrolado, com voz mole. Mas todos permanecem mais ou menos em fila. O Hino os embala, e a impressão que se tem é que se trata de algo maior do que cada um deles.

Já para os jovens, um número menor de escolas pede que cantem o Hino. Mas as há. Contudo, por um fato dito pelo filósofo americano Richard Rorty, e citado por Paulo Ghiraldelli Jr em seu livro a ele dedicado ("Richard Rorty", Editora Vozes), na escola os jovens começam a levantar questões sobre o que aprenderam durante a infância. Esta será a marca da universidade, mas já se faz, por exemplo, na escola, perguntas sobre os interesses de Cabral ao vir ao Brasil. Também se pergunta pelo tal "descobrimento", uma vez que já existiam habitantes aqui. A história do Brasil, afinal, produziu um Estado, uma população culturalmente muito diversificada, mas também produziu morticínio de índios e escravização de negros. Isto para o que se sabe no nível da crítica feita no segundo grau.

Temos visto muitos casos de alunos desrespeitando professores em sala de aula. Estes casos incluem os jovens que batem em professoras, e universitários que tentam forçar o professor a aderir a uma greve (https://www.youtube.com/watch?v=OUmKfiVHcPc), ou que apagam o quadro enquanto o professor escreve (https://www.youtube.com/watch?v=lpsQu29r55Y). Mas também há situações em que se observa a permanência do respeito do aluno em relação ao professor e à escola.

Por "respeito ao professor e à escola" refiro-me ao comportamento, diante deles, diferente do que se tem quando se está em casa ou na rua, com os amigos. Falo de um certo comportamento auto-contido, que permite ao jovem manter-se atento para escutar e aprender com o ambiente escolar. Este comportamento não inibe o jovem de apreender à maneira dele o que foi desde cedo ensinado. Se desde criança o jovem canta o hino, quando jovem ele terá tudo para mostrar a sua própria versão.

Este vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=IM8Dj0DDScE) mostra alunos de uma escola da Paraíba que fizeram um remix do nosso hino, vertendo-o para o funk, enquanto dançavam a dança chamada "passinho". A música começa como todos conhecemos, mas logo se transforma, junto dos movimentos dos jovens. Este caso mostra o jovem expressando à maneira dele o que aprendeu. Mostra, também, que o outro olhar, a crítica, pode ser feita tanto num texto como num remix. Ambos mostram que a narrativa ou o ritmo podem ser diferentes.

Apresentando-se em torno do Hino Nacional, com seu corpos coreografados, os jovens mantem-se no mesmo ambiente que todas as outras pessoas que ouvem o Hino e sentem-se filhos de uma pátria. Ao ouvirmos a voz mandona e carinhosa do pai, é normal requebrarmos. Estamos envoltos por uma sonoridade que nos abriga. Imagine-se em Portugal e ouvindo o hino deste país, e não mais o do Brasil? Mesmo que, porventura, você esteja em um bairro parecido com um do Brasil, ao ouvir o hino diferente você certamente se sentiria fora de casa. Somos filhos de uma pátria e temos uma linguagem corporal e musical para experienciar e expressar isso.

Em Manaus, por ocasião de uma cerimônia com a tocha olímpica das olimpíadas de 2016, soldados fizeram uma exibição com uma onça-pintada. Quando tudo estava encerrado, pelo comportamento agressivo da onça os soldados acabaram matando-a com um tiro de pistola. Em propagandas e pronunciamentos oficiais, a imagem do exército é de que ele protege as coisas do Brasil, dando prioridade a quem mais precisa de ajuda, como vítimas de calamidades e animais em extinção. Eles têm treinamento, são exercitados para a ação na água, na terra e no ar, além do manejo de armas de fogo, para cumprirem aqueles objetivos. A eficiência e o respeito à nossa moral aparecem, nas propagandas, como patentes nas ações e no comportamento de um militar. Melhor do que ninguém, eles devem saber cantar e por a mão sobre o coração ao som do Hino. Devem sentirem-se em casa, ao ouví-lo, e amarem as coisas do Brasil.

A morte de Juma, no entanto, chega-nos como mais uma violência que esta instituição, que inclui a Polícia Militar, é capaz de perpetrar. Todos temos histórias de abuso de autoridade de militares. Com armas na mão, eles parecem antes satisfazerem seus desejos agressivos do que atuarem como recomendou Platão, na República, ao guardião: tal como o bom cão, o guardião deve ser amável com os concidadãos e agressivo com o inimigo externo. Não sentimo-nos seguros próximos a um militar do nosso país, pois ele, se não comete violência contra nós, pronuncia-se a favor dela.

Aqueles jovens, ao dançarem, reverenciam o Hino. São alegres como a boa imagem que temos dos brasileiros. São vivos como onças-pintadas.

Já o corpo militar, esse cheira à morte.


P.s.: Se você acha que o militar agiu corretamente ao matar a onça, saiba que a disposição em defender a vida nos faz pensar que este acontecimento deveria e poderia ter tido um outro desfecho. E a disposição para a morte faz com que apenas se busque justificar o que ocorreu. Quem defende a morte, além de mau, não pensa, não vai além das situações. Em suma, é burro.

Como fazer o desfralde?


Acontecem muitas duvidas na hora do desfralde, como fazer, o melhor momento de iniciar essa transição de maior independência das crianças.
E a primeira observação que os pais devem perceber é se a criança está com maturação para tirar as fraldas (explico a diferença entre maturação e maturidade nesse texto AQUI).
Alguns médicos falam que a média é de dois anos de idade, entretanto a criança vai te dar sinais que podem ser do interesse de ir ao banheiro “conhecer mais essa rotina diferente” a tirar a fralda e não querer usar mais.
É importante que os pais entendam que os papeis deles são de auxiliadores do processo. As punições, obrigações e brigas no processo de tirar a fralda podem trazer culpa e desconforto a criança, fazendo com que ela prenda a urina e as fezes por muito tempo ou tenha medo, podendo causar uma infecção urinária ou ressecamento das fezes trazendo dor para esse momento.
A escola e creche podem ser um aliado, tendo em vista que há convívio com criança da mesma idade que estão passando pelo mesmo processo, podendo gerar uma identificação.



A criança sinalizou? Vamos começar o desfralde.


Compre um penico ou assento. Para que a criança se sinta confortável e acessível ao banheiro, com esse conforto pode-se gerar confiança para essa independência.

Ensine o processo. Deixar a criança observar o processo de fazer xixi e/ou cocô é muito importante e estimulante, podendo ser no vaso ou no banho.

Vamos estimular. Comprando calcinhas e cuecas temáticas, deixe que as crianças participem dessa escolha, podendo sinalizar verbalmente que as peças íntimas novas são para essa nova etapa.

Faça Festa. A criança pediu ou fez? Sinalize que ela foi muito bem e que ela está aprendendo. Quando as coisas parecem um jogo estimulam mais as crianças, sejam criativos.

Tires as fraldas definitivamente. Não confunda as crianças deixando ela uma parte do dia com fraldas e outro sem, isso pode gerar dúvidas para ela, podendo tardar o desfralde.

Faça um trato. Combine com sua criança que vocês vão está sempre verificando se tem xixi. Fale “vamos vê se tem?” para que não haja muita resistência. Lembre-se de verificar em tempos curtos, com aproximadamente 2h de intervalo, dependendo de quanto liquido a criança tomou. Nesse processo a criança vai aprendendo quais são os sinais que o corpo dá para sinalizar o xixi e o cocô.

Desfralde a noite. Sim, são desfraldes diferentes. Você pode combinar com essa criança que depois de 10 dias de fralda seca essa fralda vai ser tirada. Combine o xixi antes de dormir. E caso continue tendo escape de urina, os pais podem cortar líquidos umas 3 horas antes de dormir. Pode ser que ainda ocorre escape, mas que a criança entenda que é uma aprendizagem.
Depois do controle noturno, pode voltar os líquidos na parte da noite.

Seja parceiro dos seus filhos nessa hora, é uma hora de aprendizagem que precisa de muito carinho e amor. Converse e tire dúvida sem chacota. O apoio dos amigos, professores e familiares podem ser de grande valor.


Autora: Psicóloga Dayane Marins, do blog parceiro Livre À Reflexão.


http://livreareflexao.blogspot.com.br/2016/06/como-fazer-o-desfralde.html

sábado, 18 de junho de 2016

Histórias são para arregalar os olhos


Na primeira chance que temos, contamos uma história. Pode ser para aconselhar. Um conselho como uma ordem, por exemplo. Ou como uma história. Walter Benjamin, no texto "O Narrador", conta de um velho que, ao leito de morte, diz aos dois filhos que se eles cavarem a terra encontrarão um tesouro. O pai morre. Os filhos passam a sempre cavar a terra. Ao ser remexida, a terra vai sendo arada e tornando-se melhor para as plantas, que começam a crescer melhores do que antes. Os rapazes fazem riqueza com os frutos que brotam dali.

Lembrei-me disso ontem, quando peguei um biscoito da sorte chinês: atrás da embalagem veio escrito para eu quebrar o biscoito e ler a sorte antes de o comer. Imediatamente pensei que aquele aviso referia-se a uma necessária pausa de reverência à boa sorte. E de fato é, pois seria uma má sorte mastigar um papel, ou engasgar com ele. Mas se apenas estivesse escrito para se tomar cuidado com o papel, não haveria história. "Quebre o biscoito, retire o papel e leia a sua sorte" é um ritual. Ouvindo o que ele diz e cumprindo-o, você imediatamente terá boa-sorte.

Crianças gostam de histórias, personagens e cenários familiares, e primeiros fatos ainda conhecidos, mas cujo desenrolar leve-as para o não familiar. Nenhuma criança quer sair de casa, mas vive imaginando como seria isso. As histórias que contamos a elas têm finais de retorno para casa. Chapeuzinho Vermelho, uma hora voltou para sua mãe. Não pela floresta, caminho que, diga-se, foi o que ela quis pegar ao ir à casa da Vovó. Branca de Neve saiu de casa para virar mulher e ir morar com o príncipe. Queremos sentir o gosto do desconhecido.

Entre adultos, conta-se histórias de doenças e assaltos. Conta-se com emoção, para impressionar a audiência. Alguns ouvintes logo retiram delas uma ordem que precisam cumprir, para escapar daqueles males, tomando o ritual ao pé da letra. Mas a maioria ouve e arregala os olhos. Elas e o narrador estão em segurança, falando sobre o que há da porta para fora.

Compartilhamos disso pelo prazer das histórias, não para tirarmos lições. As lições são as palavras das nossas mães que nos valem mais pelo som do que pelo conteúdo. Estamos em casa se estamos sob aquela frequência sonora. Vamos aonde temos vontade de ir, mas regularmente voltamos para aquele som.

As histórias dos colegas, diferentemente das das mães, não veiculam ordens. São apenas histórias sobre o dia em que ousaram espiar do lado de fora. Se os outros quiserem também espiar, se tiverem coragem, eles que se garantam. Viverão risco, viverão passos aventureiros.

Há quem, estranhamente, adote histórias como pautas de comportamento a serem seguidas ou rechaçadas. A Bíblia frequentemente é citada como textualização do que deve ser feito, e também como conjunto de orientações para a violência e o atraso. Mas a Bíblia é uma história normatizadora apenas para os judeus. Os não-judeus tomam-na como inspiração, assim como o fazem com Platão ou Machado de Assis. Estes são livros que mostram você saindo de casa para viver algo novo. E, assim, fazem-nos arregalar os olhos, e então desarregalá-los, enquanto vai ficando pensativo.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

O jovem mortal


Um grupo de jovens conversava no meio-fio. Um carro para na frente deles, manda-os correrem, exceto um. Este devia ficar parado, e é executado. O pai tinha dívida no tráfico, e a tragédia engoliu sua família. Um dos jovens que correram não tem tragédia: foi trabalhar, estudar, fazer família, trabalhar mais, etc.

Um caminho de "estudo e trabalho" é o que geralmente se diz aos jovens, embora, para alguns, ele seja de "trabalho, estudo e trabalho". O jovem que correu seguiu um caminho parecido com aqueles planos, mas que não foi uma cópia exata deles. Disseram que se ele seguisse o plano, afastaria a morte, teria algum dinheiro e garantia, e seria feliz com sua família. Estas coisas aconteceram, mas a morte, contudo, nunca saiu de perto dele.

O filósofo romeno Emil Cioran conta que há dois tipos de homens: há aqueles que passam a vida negando a existência da morte, e há aqueles que nunca deixam de se lembrar dela. A morte não cessa de crescer na vida destes homens, e isto causa a sua mudança. A saúde, pelo contrário, é o que paralisa a vida, assegura escolhas e caminhadas sem surpresa.

O homem que afasta a morte viveu de forma exata. Morreu de repente. O homem que convive com a morte, fez dela o seu temor e o seu tema de longas conversas. Cada centímetro que a morte cresce é por ele decepada: algo novo para cumprir no trabalho, a doença de uma mãe, o cansaço de conciliar trabalho e estudo, a falta de dinheiro para a festa do filho, e ele dá o próximo passo.

A morte é precisa como um ponto final. Assim também é a vida distante da morte. Pense num cara de terno, com plano de saúde e seguro de vida. Ele não pode morrer. Pum!, morreu. A precisão da vida a rebaixa ao túmulo, disse Cioran. E ela acaba de repente.

Agora pense naquele que pula de para-quedas. Uma vez por mês ele beija a morte, torcendo para a que a morte não ponha a língua em sua boca. A vida dele não é nenhum caminho, preciso ou impreciso. Ele gira em torno de si mesmo, compulsivamente.

O jovem que uma vez correu, e então reduziu a velocidade, está andando. A presença da morte na vida dele a deixa imprecisa. Ele vai morrendo a cada instante em que vive. Isso o leva a dar passos novos.

A morte é um filme, contado pelo jovem, sobre uma família perturbada por espíritos: os personagens morrem ou enlouquecem. O filme é próximo o bastante para que haja a identificação, mas distante o bastante para que não seja o próprio jovem ou sua família o alvo. Espíritos não são bem reais.

Ele pode comentar sobre uma moça que foi baleada em um assalto. O cara estava louco, ela deu mole. São histórias que o jovem conta, tragédias. Elas não vão matá-lo. Ninguém está livre de espíritos, da loucura, de ser assaltado ou baleado. Quem sabe o que pode acontecer? Mas o jovem vai simplesmente dando seus passos.

terça-feira, 14 de junho de 2016

A fidelidade dos números


Quatro mais quatro são oito. Seis mais dois são oito. Sete mais um são oito. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete e, agora, pode crer que há o oito. O oito sempre será o resultado deles. Ao oito é fácil ser fiel, manter-se atado ao quatro mais quatro, e responder àquelas outras convocações.

A criança, que pensa por casais, e por casais com um filho cada, toma o quatro como o primeiro e o outro quatro como o segundo elemento do casal. E o oito é o necessário, e exclusivo, produto dessa união.

É claro que o seis e o dois não podem fazer o oito, assim como ela própria, a criança, não pode ter nascido do casal da porta ao lado. Ela é filha de pais iguais, quatro e quatro. Ambos contribuíram na mesma medida para fazê-la. Há, aí, uma ideia e uma sensação de simetria.

A criança é simétrica, arredondada, par homogeneamente misturado. Se o oito também puder ser produzido pelo seis e pelo dois, é um oito assimétrico: ele terá puxado mais do pai do que da mãe.

Bem, as crianças frequentemente dizem que são filhas do pai, mas são cópias da mãe. Isso quer dizer que são filhas do quatro, algo que sai dele e, sendo assim, dele difere, e que elas são quatro identicamente à mãe. Puxaram os olhos, o nariz e a boca do pai, mas são inteirinhas as suas mães.

São como se fossem a própria pessoa da mãe: vestem suas roupas, sentem fome, tomam banho e dormem junto dela. E sentem ciúmes do pai, também ficando de namorico com ele. O namorico com a mãe é com o espelho, com uma igual a ela. O namorico com o pai é com alguém diferente delas, pois, diante dele, não são quatro, mas a filha do quatro.

Ao mesmo tempo, imaginariamente, a criança é uma parte do quatro, um quatro inteiro e, não esqueçamos, o oito. Ela é descendente do pai, herda coisas dele, mas não tudo, permanecendo distinta dele. Ela é uma cópia da mãe, repetindo os mesmos passos dela, sendo a mesma coisa que o refletido pelo espelho. E ela, mesma, é totalmente uma outra coisa.

Pelo pai, a criança é beneficiada. Pela mãe, duplicada. Por ambos, ela é ela mesma. De quatro mais quatro, é certo que surja um oito. Números são fiéis. O oito, porém, um dia descobre que é diferente de cada um daqueles quatros.

A criança é um produto também do pai, e se o pai é quatro, ela só pode ser outra coisa, um outro número. Dois é o número que ela pode pensar quando mira no rosto do pai, é o que saiu dele. Quando pensa na união entre o pai e a mãe, ela, que era quatro, igual á mãe, soma-se aos dois do pai, dando seis. A criança é quatro e seis, a mãe e a mãe + o pai. Nesse arranjo, ela não é oito.

Ela poderá, então, começar a imaginar a união dela com alguém diferente, não simétrico a ela: dois, quem sabe, com quem formaria um oito? Mas dois não é muito pouco? Então tá, ela vai arrumar, no mínimo, um outro seis. O par deve ser igual a ela.

Mas será que dá pra arrumar outro seis? É mais fácil ela arrumar um dois, e pintá-lo de seis.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Os tiros na boate e o cultivo do pior


Uma pessoa pode pensar más coisas acerca dos gays. Pode, um dia, sentir raiva de alguém pelo fato de ela ser gay. E parar por aí. Os maus pensamentos e emoções vão embora. Foram coisa de momento.

Uma outra pessoa pode, entretanto, pensar e permanecer pensando mal dos gays. E o desejo pelo mal deles pode perdurar muitos anos. E, inclusive, ganhar a forma de ato destrutivo em relação ao objeto do seu ódio.

Platão, um homem da Grécia antiga, entendia os seres humanos como mortais. Os deuses eram imortais. Eles eram poderosos, sensuais, guerreiros, trabalhadores, e permaneciam sendo essas coisas para sempre. Se por um lado os deuses possuíam estas características dos homens, por outro guardavam o privilégio de nunca deixarem de existir. Os homens podem ser aquelas coisas, mas as são passageiramente.

O que nos tornamos durante uma vida, os acontecimentos que nos deixam memórias, particularmente as memórias que entendemos como formadoras da “minha identidade”, além das ideias e emoções que consideramos nossas próprias, compõem o que modernamente chamamos de eu, de self. Esta construção nos dá uma sensação de permanência para nós mesmos.

No entanto, quando morremos, aonde esse eu vai parar? Quando mudamos de ideia, ou uma forte emoção nos deixa, abraçamos a posição ou a pessoa a quem antes criticamos. Somos os seres de Platão, ou melhor, os seres de Heráclito, por estarmos no rio das mudanças.

No diálogo Alcibíades I, o jovem de mesmo nome não era mais tão jovem, assim, e expressava a Sócrates a sua intenção de tornar-se um estadista. Julgava ele ter conhecimento do necessário para ser um bom político. Contudo, na conversa com o filósofo, após algumas malgradas tentativas de definição do que é a justiça, Alcibíades já não tinha mais a certeza de antes. Ele vacilava no conhecimento sobre a justiça. Sócrates diz que é preciso cuidar da alma que conhece as coisas, de modo a que se possa aspirar a qualquer posição social. E para cuidar da própria alma é preciso conhecê-la. Como cuidar, como aprimorar aquilo que não se conhece?

A questão de Sócrates, o entanto, não aponta para “quem” eles são, ou seja, não quer saber sobre as individualidades Sócrates e Alcibíades: Sócrates pergunta pelo “o que” eles são. Esta pergunta trata ambos como essências, além de coisas comuns, não individualizadas.

A diferença, aqui, é entre os termos “auton hekaston”, que quer dizer “cada mesmo individual” e “auto to auto”, que quer dizer “o mesmo, em si mesmo”¹. O indivíduo pode se dizer o mesmo ao longo da sua vida, sem transformação. Pode, também, reivindicar exclusividade para a posse dos elementos que aponta como seus. Mas, como eu disse, o “cada mesmo individual” deixa de existir quando morre.

Platão entendia que os seres humanos são encarnações de almas imortais em corpos mortais. Durante uma vida, vai ocorrendo a formação de uma individualidade, como uma alma superficial. Contudo, a alma imortal, “a mesma, em si mesma”, permanece em mim. E essa alma não me pertence, pois sua natureza é divina. Ela está temporariamente em mim. E é em direção a ela que Sócrates empurrava Alcibíades, afastando-o do saber sobre a própria individualidade, saber superficial, aproximando-o do saber sobre aquilo o que realmente era ele.

Cada homem tem uma alma, a sua alma, a sua individualidade. Mas cada um, tendo uma alma, tem a mesma coisa do que os outros, a alma em si. Temos, essencialmente, a mesma substância. E essa substância pertence a uma realidade que não é a da terra. Aqui, o amor e o ódio duram frações de segundos que julgamos eternos e decisivos. Acreditamos demais em nossos eus, e matamos e morrermos por eles. Fazemos mal a nós e aos outros, pelas nossas convicções. Nossa alma imortal não conhece os parâmetros que tentamos colocar a nós mesmos. Ela continuará vivendo, ao morrermos, deixando de lado tudo o que nos tornamos em vida.

A alma do filósofo, especificamente, antes de estar em seu corpo, sobrevoava a morada dos deuses, o Mundo das Formas, das causas e dos modelos do que há na terra. Lá, no Mundo das Formas, está o Belo, a Justiça, a Sabedoria, além das outras formas. O que há na terra é imperfeito, enquanto as Formas são perfeitas. São as melhores de cada coisa. Por serem as melhores, sobre todas as formas há a forma das formas, o Bem. A alma do filósofo tem conhecimento de tordas aquelas virtudes divinas, e também do Bem.

Durante a sua vida, o filósofo estranha o mundo e a si mesmo: que é este discurso, esses atos, esse sentimento, dele ou dos outros? Ele vê o particular, o caso, inserido no geral, universal. Ele busca o universal. Quando vê algo bonito, pensa na Beleza. Quando se impressiona com um texto, impressionou-se por recordar da Sabedoria. Diante de uma injustiça, ele se sente inexplicavelmente mal. Bem, quase inexplicavelmente: ele sabe que a Justiça foi ferida, e isso doeu em sua alma.

O filósofo vive querendo que os casos particulares sejam mais próximos da Justiça, da Beleza e da Sabedoria. Ele quer ser assim, e que os outros também o sejam. A mortes de gays em Orlando (http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/06/policia-diz-que-ataque-em-boate-nos-eua-deixou-50-mortos.html) nos tocam de uma forma que não sabemos explicar direito. Algo de muito ruim aconteceu, sabemos. Algo que não deveria acontecer, em um mundo que, por algum motivo, queremos que seja Justo, Belo e Sábio. Um mundo que seja o melhor que as pessoas puderem fazer.

O acontecimento de Orlando contraria esse nosso ideal. Quando pessoas acham-se grandes em suas pequenezas, fincando-se em ideias e afetos ruins, levando a atos desastrosos, cada um de nós, sendo ou não filósofos, lamentamos que o nosso mundo tenha se tornado um pouco mais injusto, feio e ignorante. E um mau lugar para se viver.

A morte de cinquenta pessoas é uma tragédia para além dessa quantidade de pessoas mortas: é um atentado contra o Bem que queremos para nós e o mundo. É uma catástrofe imensurável.


1 - Ghiraldelli Jr, Paulo. Sócrates, pensador e educador: a filosofia do conhece-te a ti mesmo. Ed. Cortez, 2015.


Ps.s: Cuidado com os filósofos que escrevem contra um mundo melhor. Eles querem que você seja alguém pior.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

O mundo sou eu


O governo não é o que eu quero. Eu irei lá ensiná-lo a governar. O presidente deve me representar tanto que eu posso ir lá e falar por mim mesmo. Ele deve ser eu. Acabou-se a distância, não há representação, falar pelo outro. Não há saber que eu não tenha. Eu sei tudo, na minha generosidade cabem a aquarela de dores do mundo, e as trato antes de tratar a minha dor. Minha dor são as dores do mundo. Quem sou eu, senão esse mundão dolorido?

Então subo no palanque para falar de mim, que sou todos. É de se desconfiar de quem sabe, de quem estudou, professa, é técnico, governa. Joaquim Barbosa, Sérgio Moro, Janaína Paschoal sabem direito, mas não o justo. FHC sabe sobre sociedade, cultura e economia, mas é elitista. O governo dele foi elitista. Eles são teóricos, gente privilegiada que não sabe da vida. A vida é essa pobreza, inclusive pobreza de leitura, e essa riqueza de "lutas".

Quero intelectuais que tratem outros intelectuais como lixo, ao me dizerem uma frase para entender o Nietzsche. Uma frase para a política e uma para a cultura. O tamanho do discurso que cabe na minha língua, para ela repetir, colar na minha ação impulsiva. Meu limite eu quero que seja o dos intelectuais, o do saber. E gosto de presidente que acha certo pegar o dinheiro alheio. Gosto de quem não complica, neles eu me reconheço.

Falam para todos, o Pondé e a Tiburi. Falam como eu. Resumidamente, e contra o marxismo e o machismo. Reúnem muitos likes e followers, então é meu este resultado. Reunião de amigos que gostam de mim, pois gostam de quem é igual a mim.

Não há diferença entre intelectuais que não sabem e não-intelectuais que não sabem, como Bolsonaro e Lula. Eles não falam por mim: eles são eu, com a diferença de que têm mais exposição do que o meu perfil principal de facebook. Eles reúnem uma multidão, e me põem com o microfone na mão. A fala que vem deles é a mesma minha. Realizei meu sonho de ser presidente! De ser inteligente!

Não há mais saber, nem detentores do saber. Há "Mexeu com Lula, mexeu comigo", "Bolsomito 2018", "Fora Temer", "Fim da cultura do estupro", etc. Sobre cada um deles eu só não falo melhor do que aquela que sofreu o estupro coletivo, porque aí eu me sentiria mal por tirar-lhe a palavra.

A dignidade de alguém está no fato de conseguir falar, e falar para militar. A coisa que eu mais penso, naquele estupro coletivo, é na quantidade de gente que impediu a menina de dizer "não". Mas, no mecanismo de uma pessoa virar todas, e de todos os outros assumirem aquele mesmo rosto, a dor particular da menina virou ao mesmo tempo bandeira e foto de facebook.

Há uma sensação de unanimidade da opinião e do protesto. Então o detentor dos saberes e o reinvindicador de coisas é difuso, mas sempre o vejo com o meu rosto. Por isso as pessoas põem filtros de fotos no facebook, com causas: elas são eu, a fala de todos é a mesma, todos são eu e a fala é toda minha. Cada um tem essa sensação.

Mas, se a sensação de unanimidade é geral, a unanimidade não é um fato: Bolsonaro e Lula não dizem nem pedem as mesmas coisas. E não os pinto com as mesmas cores. Não pinto meu rosto com as mesmas cores, se sou um ou se sou outro. Mas de alguma cor que era de uma mulher que sofreu machismo, ou de um bolsominion, ou de um post meu cheio de likes, que viraram de todos, eu pinto o meu rosto.

p.s.: Este texto é um contraponto à conversa de Michel Foucault e Gilles Deleuze, intitulada "Os intelectuais e o poder", publicada no Microfísica do Poder.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

No corpo: além e aqui


No segundo canto do Ilíada, de Homero, é contado que os gregos correram para pegar as naus a fim de retornarem para casa (1). É que a saudade das mulheres e dos filhos apertou, e a guerra não seria vencida por eles. Foi o que lhes dissera seu comandante, Agamêmnon, afirmando que Zeus tranquilamente faria a maldade de vê-los morrer aos milhares e sofrerem aquela ausência de nove anos de sua terra natal, sem recompensá-los em nada.

Hera mandou Atena impedi-los. A grande deusa dos olhos de plácida toura queria a vitória dos gregos. E Atena era a deusa do ânimo guerreiro. Atena solicitou a Ulisses que, neste momento, ele virasse o rei de todo o exército grego, como se ele fosse um procurador de Agamêmnon. O grande rei de Ítaca avisou aos outros reis, desesperados, que se eles realmente voltassem teriam muito o que temer de Agamêmnon, um rei maior do que eles. Agamêmnon se notabilizava pela sede e grande capacidade de granjear mais poder, pelos muitos territórios e homens sob seu comando.

Aos soldados comuns Ulisses chamou para fora do auto-comando para o qual as saudades os empurrara: haviam se desesperado quando foram lembrados de casa, dos que cresciam e morriam sem conviver com eles. Este auto-comando, impulsivo, para sair dali, deveria dar lugar ao comando de um rei. O que deveria vigorar entrar os soldados era uma única voz, e não milhares de vozes. Cada soldado não podia ser seu próprio comandante.

É como o filho adolescente que pega dinheiro e as chaves do carro, e sai tarde. Ele ri e se diverte com os amigos já pelo zap. O pai percebe isso, e avisa-o dos cuidados que precisa ter com a bebida e a direção do carro. O filho lança-se à diversão sem freios, é um auto-comandante movido pelos sentidos, pelo corpo. O pai atua aí como a sua razão auxiliar.

Ulisses faz os reis e soldados gregos novamente sentirem vontade de lutar por Tróia e Helena. A saudade apertou, mas seria vergonhoso partir sem conquistar nada. Este é o drama de todos nós quando ao mesmo tempo queremos e não queremos algo, queremos ficar tanto quando queremos sair. As palavras iniciais de Agamêmnon, que na verdade intencionava testar o quanto aquele exército queria lutar e vencer, mostraram aos soldados as razões que eles tinham para partirem. E Agamêmnon contava com aquelas palavras de Ulisses mostrando-lhes as razões para permanecerem.

Com o despertar da saudade o impulso por voltar, dos gregos, ocorreu rápido. Mas durou um momento, e então eles calcularam que valia mais vencerem e fazerem esta volta com glória. O homem antigo tem um órgão que o moderno não tem: o thymos (2). Ele se apaixona por alguém, é possuído por Eros. Deseja possuir este alguém. Mas, por thymos, o que o interessa não é possuir o seu amado, mas ser por ele reconhecido e, com menos intensidade, também ser reconhecido pelas demais pessoas. Ele se orgulha de si mesmo e quer louvores.

Em nome de eros, os gregos quiseram retornar para casa e reaver seus queridos. Mas por thymos eles preservaram-se na luta, pela promessa de vencerem e terem glória. Calcas havia visto uma assustadora serpente devorar nove pardais, e logo em seguida desaparecer. Na interpretação do vidente, nove foram os anos que eles consumiram naquela guerra ma,s assim como não havia mais serpente, não havia quem lhes tirasse a vitória no décimo ano. Ulisses, conhecido pelos seus mil ardis, soube aproveitar esse vaticínio favorável para tocar o thymos daqueles homens.

Pela psicologia platônica(3), o homem pode ter três tipos de alma: uma com o intelecto mais desenvolvido, uma com o thymos, o senso de justiça e a necessidade de orgulho mais desenvolvido, e outra com os apetites, o desenvolvimento da capacidade de observar o suprimento das necessidades corporais (como, por exemplo, faz um cozinheiro). Aquiles se imortalizou por sua cólera, ou seja, por um certo funcionamento do seu thymos. Ulisses se imortalizou pelo seu intelecto. No mundo homérico, a parte da alma ou a parte do corpo eram o destaque: Íris de pés velozes, Hera rainha com olhos de plácida toura, Zeus detentor da égide, Aquiles de louros cabelos, Ájax Oileu de longa lança, etc.

Após Ulisses convencer os soldados a permanecerem lutando, surge Térsites. Homero descreve o corpo deste homem: feio, de cabeça pontiaguda com uma lanugem em cima, ombros e costas curvadas, estatura baixa, coxo em um dos pés. Enquanto o homem em Homero não possuía um corpo, mas uma parte de corpo de destaque e que lhe fazia ser memorável(4), tocar o eterno, Térsites é aquele que está preso ao seu corpo inteiriço e degradado. Térsites fala impropérios a Agamêmnon, e Ulisses usa o pesado cetro para fazê-lo cair no choro.

O ser memorável aproximava o homem dos deuses, afastava-o do tempo da mortalidade. Nestor é um ancião mas, por ser excelente em auxílio (no vocabulário de Homero, um grande conselheiro), fazia-se presente na guerra. Justamente por ser velho é que ele valia muito. O jovem que quer beber e dirigir a mil por hora está curtindo suas sensações corporais. É um corpo inteiro se embriagando de álcool, sexo, música e velocidade. O pai não está nessa, e imprime um comando naquele que está se auto-comandando pelos impulsos, não pela razão. Nesta hora vale a velha hierarquia do "quem manda mais".

O homem oscila entre a busca por proteção e a busca pela liberdade. Ele quer parâmetros de vida, mas também quer decidir sobre si mesmo. Em plena "sociedade da leveza" (5), ele quer a âncora de uma bandeira, um relacionamento, uma identidade, uma corporeidade. Se por um lado por ele passam infinitas informações, por outro lado ele é o velho corpo.

Temos aplicado uma pedagogia que busca o comando da razão sobre o corpo. Inicialmente o que vale é o comando dos pais e da professora. Depois será o do indivíduo sobre si mesmo. Falta atentar-mo-nos para a vitória de Ulisses sobre Térsites, ou seja, a do talento que leva à excelência sobre a degradação do corpo.

Porque não deixarei meu filho se embriagar? Porque direi para o meu filho pequeno não passar o dia no pc, e não comer todo o biscoito? Porque as informações e estímulos, quando passam por mim, em mim geram vontades, e a vida baseada na busca pela satisfação de vontades é a manutenção de si mesmo na corporeidade. Se me toco, faço sexo ou consumo algo para satisfazer a uma vontade, e faço essas coisas para sentir que estou aqui, que tenho um corpo real, esse corpo real sempre carecerá de satisfação. Carecerá de algo mais. Esse algo mais, apontado pelo desacreditado humanismo, pode estar no intelecto, na espiritualidade, em suma, em tudo aquilo que aponta para fora deste lugar aqui (6).

1 - Homero. Iliada, Canto 2. Companhia das Letras-Penguin.
2 - Ghiraldelli. A Subjetividade Timótica. (https://www.academia.edu/15531117/Sloterdijk_subjetividade_tim%C3%B3tica)
3 - Platão. A República. Edipro.
4 - Esta ideia de que em Homero não há corpo, mas partes do corpo, e que a atribuição de glória ao homem era feita a uma excelência relativa a elas, surgiu no hangout do Centro de Estudos de Filosofia Americana, do dia 05/06/2016, coordenado pelo filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. Ainda não foi publicada.
5 - http://ghiraldelli.pro.br/icaro/
6 - Baseio-me, aqui, no texto "O Corpo Utópico", do filósofo Michel Foucault. Neste texto inicialmente é apresentada a idéia de que o corpo é uma prisão, da qual tenta-se fugir através de utopias (lugar-nenhum), que negam esse corpo. Em seguida, assume-se que as utopias, apesar de voltarem para negar o corpo, surgem dele, tomam suas características como o modelo das utopias. Também há a ideia de que o homem não está onde está o seu corpo, mas em seu pensamento, um lugar-nenhum ou lugar-fora daqui. Por fim, Foucault mostra que o lugar em que estamos é o nosso próprio corpo, quando somos vistos e tocados por quem amamos. Esse olhar e esse toque nos diz que estamos bem ali, nos faz sentir a nós mesmos, e isso realiza a utopia do corpo. Eu faria o seguinte comentário: para que exista uma utopia do corpo, um fora do aqui, é preciso que haja um momento de saída do corpo, de se imaginar algo além dele, das suas sensações e vontades. Tendo havido este momento, um corpo pode ser tocado por outro corpo, e isso ser a realização daquela utopia. Ao passo que, se se mantém atado ao corpo, buscando suprir as vontades dele, não há formulação de qualquer utopia, não há qualquer lugar-nenhum.

Alienação parental: O que é e como acontece.

A alienação parental está ligada a uma tentativa do tutor da criança em interferir na percepção e construção de laços afetivos da criança com parentes biológicos, normalmente pai, mãe e/ou avós.

Isso se dá de forma simbólica, de modo que a criança acredite ter construído, por si própria, uma visão negativa do familiar ou acredite que não deveria nutrir uma relação afetiva por dever, carinho ou algo do tipo a seu tutor.


O que a lei nos diz que é.

Existe uma lei que pauta a alienação parental e busca proteger a criança, entendendo que normalmente as ações de alienação estão atreladas a conflitos que extrapolam seus interesses.

Veja trecho da Lei 12.318 que nos exemplifica o que é considerado alienação parental:

I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou
maternidade;
II - dificultar o exercício da autoridade parental;
III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;
IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;
V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço;
VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;
VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós.

Veja a lei na íntegra pelo link: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm

Um olhar ao redor - alienação parental em nosso cotidiano.

É comum em nosso convívio haver conhecidos que vivam ou já viveram situação de alienação parental, ainda que não saibam.
Alguns casos conhecidos me vieram à mente e decidi compartilhar com os leitores do Làr.

Uma criança foi criada pela avó paterna após a morte do pai e o desenvolvimento de depressão pós parto por sua mãe. A mãe, quando recuperada da depressão, não buscou de imediato o contato com a filha. Esta mãe seguiu sua vida e atualmente possui outros dois filhos provenientes de um novo casamento. Recentemente, cerca de alguns anos, essa mãe buscou a filha e a integração dela como membro de sua família. A avó tentou impedir durante um tempo, proibindo a menina de ver a mãe, mas após pedido da jovem, acabou por ceder. Embora tenha sido pedido seu, a menina relata não se sentir a vontade em meio à ‘nova família’ e sente-se desconfortável em deixar a avó aos fins de semana para passar um tempo com a mãe. A avó por sua vez, entende esse laço como inconveniente, já que a mãe não cuidou da filha durante a infância. A menina hoje beira os 18 anos.

Outro caso refere-se a um jovem que atualmente possui uma percepção negativa de seu pai e não tem interesse em manter contato com ele. Esse rapaz foi criado pela mãe, já que o pai os deixou quando o menino tinha torno de 2 anos. O pai nunca pagou pensão, mas arcava com algumas despesas, dentre elas, a escola. A mãe habitualmente reclamava ao rapaz o atraso no pagamento da escola, assim como o fato de seu pai não procurá-lo para fazer programas que pais e filhos, em seu julgamento, deveriam fazer. O rapaz, que quando novo tinha interesse em retomar contato e vínculo com o pai, hoje quer apenas pensão, por acreditar ser obrigação do pai ajudar sua mãe a ‘criá-lo’. O menino beira os 10 anos.


Pensar alienação parental não cabe julgar “certo e errado” diante a vida, mas sim “certo e errado” quanto às atitudes e comportamentos que influenciam a criança e seus laços.
Casos assim são mais comuns do que imaginamos, basta um olhar atento a nosso redor.

Desdobramentos para a criança e suas relações.

A criança é a mais prejudicada na história, já que, normalmente antes à alienação parental ocorrem conflitos que não necessariamente envolvem diretamente a criança, como os recorrentes casos de separação conjugal.


Discursos prontos e adultizados, sentimentos de vingança e raiva contra o familiar são comuns em crianças que sofrem alienação parental.
Por outro lado, internamente a criança tende a sentir-se confusa e sem saber como se posicionar diante do familiar. Isto se dá por uma insegurança e medo de ser julgada e incompreendida por seu tutor ao demonstrar afeto e interesse pelo familiar.
Normalmente o alienante (pessoa que provoca a alienação) envolve a criança em seus sentimentos e questões pessoais, ou seja, na dificuldade em lidar com aquela situação, a criança entra como mecanismo de enfrentamento.
A postura que a criança espera em casos de separação, guarda com tutor diferente e etc, é que ela possa ser acolhida e entendida por quem ama. Escuta e compreensão são extremamente importantes. Permita-se ouvir o que a criança deseja e como se sente diante de toda a situação que já possa ter sido criada.
Não é porque seu relacionamento com a mãe, o pai, a avó, o avó, dentre outros, não é bom que seu filho/tutelado não poderá ter uma relação saudável com eles.

Eu nessa história.

Acredito na importância de salientar que a alienação parental pode estar no vizinho que se mudou recentemente para a sua rua com o neto e que os genitores desconhecem o novo local de moradia da criança. Na amiga que proíbe o filho de sair com o ex parceiro, mesmo em dias determinados de visita. Em seu posicionamento com seu filho ao desqualificar o relacionamento da avó com ele. E em muitos outros casos que nos passam despercebidos.

Há um desejo íntimo que este texto sirva como um alerta, um alerta para que todos possam se posicionar quanto conhecedores do fenômeno e fazerem, dentro do que for cabível, o possível para alertar outras pessoas, para fazerem a diferença e orientarem adultos e crianças que possam estar vivendo uma situação de alienação parental.


Thais Trajano, psicóloga.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

O respeito com o que é do outro


No episódio do dilúvio, constante no Gênesis, Javé arrasou todos os seres vivos da terra, com quarenta dias de chuva e cento e cinquenta de permanência das águas. Desde Adão, os homens mostram-se seres pecadores, no sentido de capazes de desobedecer aos preceitos de Javé. O dilúvio foi uma limpeza deste pecado. Após as águas baixarem, a família de Noé e os animais salvos puderam sair da arca. Javé disse ao carpinteiro que jamais voltaria a provocar outro dilúvio, outra "varredura em massa" contra os homens.

Quando Moisés conduziu o povo de Israel para fora do Egito, rumo à terra prometida de Canaã, o exército egípcio os perseguiu, para fazê-los voltar à escravidão. Javé queria que Israel formasse uma sociedade sem diferença econômica e sem opressão. No encalço de Israel, o exército egípcio o encurralou no Mar Vermelho. Por um gesto de Moisés, o mar se abriu para que Israel passasse com os pés secos. Atrás do povo, o mar ia se fechando por sobre os perseguidores, engolindo-os. Não foi Javé quem cobriu os pecadores de água, mas o levantar de braços de Moisés.

A chegada de Israel a Canaã teve a condução de Josué. Javé ordenou que ele tivesse firmeza e coragem para que cumprir os desígnios que passara a ele, através de Moisés. O povo veria que Javé está com Josué, não os deixando, portanto, sozinhos e desprovidos da proteção e orientação divina. Javé também não agiu sozinho, mas por meio de Josué. O sacerdote ordenou que a arca da aliança, a peça sagrada da aliança de Javé para com o povo, fosse a primeira a começar a travessia pelo rio Jordão. Ordenou, também que doze sacerdotes fossem indicados pelas doze tribos de Israel, na quantidade de um por tribo.

"Quando a sola dos pés dos sacerdotes, que levam a arca de Javé, Senhor de toda a terra, tocar a água do Jordão, a água do Jordão ficará cortada: a água que vem de cima ficará parada num só monte." (Josué, 3:13)

Quarenta mil homens, e a arca da aliança, atravessaram o Jordão incólumes. Os reis dos amorreus, habitantes a oeste, e os reis dos cananeus, habitantes de junto do mar, sentiram-se ameaçados ao verem que Javé estava com Israel.

Javé ordenou que Josué circuncidasse os descendentes ainda não circuncidados de Israel. Esta era a marca da pertença a este povo. Josué cumpriu o ordenamento. Eles estavam no mês da Páscoa, e no dia quatorze eles a celebram, comendo os produtos da terra. Deveriam pisar na terra, e consumir os produtos dela. Não estavam mais no deserto, e o maná pararia de cair dos céus. Começavam uma vida nova, aqui, e deveriam viver por suas mãos.

Chegando próximos a Jericó, cercaram-na e na hora certa atacaram-na. Javé havia lhes dito a consagrar tudo o que era vivo ao extermínio. A espada de Israel correu em crianças, mulheres, homens, velhos e animais. Toda a riqueza, prata, ouro e objetos de bronze e ferro de Jericó também seriam consagrados ao extermínio, devendo ser entregues ao tesouro de Javé. Javé não é um homem, que enriqueceria com esses bens, mas um destino das ações dos homens, com vistas a não se deixarem vencer pela cobiça dos seus olhos. Isto não foi o que fez Acã, que tomou riquezas para si. O exército de Israel sofreu uma derrota na cidade de Hai, e Javé reuniu o povo para dizer que aquele fato deve-se à falta de um de seus homens. Caso não obedecessem às leis contra a cobiça geradora de desigualdades, Javé se retiraria do meio deles.

"Acã respondeu a Josué: 'É verdade. Eu pequei contra Javé, deus de Israel, pois fiz o seguinte: entre os despojos, vi uma capa babilônica muito bonita, duzentas moedas de prata e uma barra de ouro que pesava meio quilo: eu os cobicei e peguei. Estão escondidos no chão, no meio da minha tenda, com a prata por baixo.' (Josué, 7:20).

No início do mundo, Eva olhou o fruto proibido. Foi vencida pela cobiça dos olhos. O fruto era uma delícia para os olhos. A cobiça a fez por a mão, pegar o fruto. O ato de pegar, tomar posse do que lhe fora vetado, foi a desobediência a Javé. Javé vetou os tesouros de Jericó, então os homens deveriam mostrar-se obedientes e dignos da proteção Dele. Adão e Eva, tendo comido a maçã e se percebido nus aos olhos um do outro, sentiram vergonha e taparam seus sexos. Esconderam-se de Javé, que os encontrou, julgou e castigou-os a viverem pelo mundo afora, olhando tudo, mas sentido vergonha do olhar do outro, como se escondessem algo, e não tendo acesso ao corpo e aos segredos do outro.

Tudo se mostraria para os olhos dos homens, menos os próprios homens. O homem é o ser que menos conhece a si mesmo. O inconsciente mostra o quanto somos inacessíveis a nós mesmos. E, por falta de conhecimento de si mesmo, o homem sente a tentação de pegar o que seus olhos desejam. Acã cobiçou riquezas, e escondeu o fruto roubado. O lindo brilho que seus olhos viram, o reflexo dos metais em sua retina, não poderia ser notado por ninguém. Triste do homem que precisa esconder o que faz! Por ter agido assim, Acã condenou a si e à sua família de morte por apedrejamento.

Purificado do pecado de Acã, o povo de Israel novamente ataca Hai. Desta vez eles poderiam manter os despojos e os animais da cidade conquistada. Assim como fizeram com Jericó, o rei e toda a população de Hai foi passada a fio de espada. Adonisedec, rei de Jerusalém, apavorou-se com os feitos sangrentos de Israel. Reuniu-se com os reis de Hebron, de Jarmut, de Laquis e de Eglon para um ataque a Gabaon, aliados do povo de israel. Estimulado por Javé, Josué vai em defesa de Gabaon.

"No dia em que Javé entregou os amorreus aos israelitas, Josué falou a Javé e disse na presença de Israel: 'Sol, detenha-se em Gabaon! E você, lua, no vale de Aialon!' E o sol se deteve e a lua ficou parada, até que povo se vingou dos inimigos. No Livro do Justo está escrito assim:

'O sol ficou parado no meio do céu
em um dia inteiro ficou em ocaso.
Nem antes, nem depois
houve um dia como esse,
quando Javé obedeceu à voz
de um homem.
É porque Javé lutava a favor de Israel'" (Josué, 10:12)

A noite não foi feita para guerrear. Os olhos não enxergam, nela. Que atrocidades não ocorreriam numa guerra noturna? Suspeitoso é o soldado que não dorme quando é para dormir.

Para por fim aos seus inimigos antes que anoitecesse, quando poderia receber algum ataque surpresa, o dia esperou Josué. Ele ordenou ao Sol e à lua, e elas obedeceram. Lógico, não ordenou a Javé. Javé entendeu o pedido de Josué como por ajuda para cumprir o seu dever, que era prosseguir com o estabelecimento do seu povo, e com o propósito do próprio Javé em limpar a terra sem precisar mandar outro dilúvio.

Josué e Israel tomaram muitas cidades, matou seus reis e também incontáveis pessoas comuns e soldados. Nenhum destes reis quis fazer as pazes com Israel: antes, por se sentirem ameaçados, voltaram-se contra eles. Apenas Gabaon pediu para aliar-se a eles. A terra deveria ficar limpa de reis e populações vivendo em regimes de exploração. Javé fez com que estes reis se voltassem contra Israel: "De fato, Javé tinha endurecido o coração desses reis, para guerrearem contra Israel, a fim de que fossem exterminados sem piedade e completamente destruídos" (Josué, 11:20).

Moisés iniciou o cumprimento do projeto de Javé. Mas ele foi, acima de tudo, aquele que apresentou as leis de Javé, os propósitos Dele, ao povo de Israel. Josué, por sua vez, foi um exemplar executor destes propósitos, menos titubeante quanto Moisés. Assim foram contados os reis que Josué matou:

"Rei de Jericó, um. Rei de Hai, que está junto de Betel, um. Rei de Jerusalém, um. Rei de Hebron, um. Rei de Jarmut, um. Rei de Laquis, um. Rei de Eglon, um. Rei de Gazer, um. Rei de Dabir, um. Rei de Gader, um. Rei de Horma, um. Rei de Arad, um. Rei de Lebna, um. Rei de Odolam, um. Rei de Maceda, um. Rei do Mate, um. Rei de Betel, um. Rei de Tafua, um. Rei de Ofer, um, Rei de Afec, um. Rei de Sarom, um. Rei de Merom, um. Rei de Hasor, um. Rei de Semeron Meron, um. Rei de Acsaf, um. Rei de Tanac, um. Rei de Meguido, um. Rei de Cedes, um. Rei de Jecnaam do Carmelo, um. Rei de Dor, na região de Dor, um. Rei de Doim, em Guilgal, um. Rei de Tersa, um. Ao todo, trinta e um reis." (Josué, 12:9).

"E a terra ficou em paz, sem guerra." (Josué, 11:23)

O mundo que nós conhecemos possui a lei da propriedade: o que é de uma pessoa não pode ser tocado por outras, pelo fato de ser daquela pessoa. Ninguém quer que as próprias coisas sejam pegas pelos outros. Quando se é criança, contudo, a mãe bate em nossa mão que se enche de balas, quando alguém oferece uma balinha. Não é porque um dia alguém pegará todas as balas da criança, que ela deve aprender a não encher a mão. É que ela não pode se deixar levar pela gulodice, ou pela cobiça dos olhos.

Deve-se respeitar o que é do outro não por uma questão de propriedade, mas por uma questão de que na terra não pode haver a expropriação do que é do outro, pois estas recompensam a inveja, geram lutas, levam à miséria e à escravidão. A criança sente a mão ardendo, e jamais lhe ocorre sentir raiva contra a mãe: a mãe domina o funcionamento do mundo, e a orienta a seguir bem. Tal é a sensação da criança. E ela se envergonha por ter atentado contra a justiça na distribuição das coisas e da paz.

Quando a criança cresce, a mãe deixa de ser Deus para se tornar alguém que a ensinou a seguir as orientações Dele.