segunda-feira, 13 de junho de 2016

Os tiros na boate e o cultivo do pior


Uma pessoa pode pensar más coisas acerca dos gays. Pode, um dia, sentir raiva de alguém pelo fato de ela ser gay. E parar por aí. Os maus pensamentos e emoções vão embora. Foram coisa de momento.

Uma outra pessoa pode, entretanto, pensar e permanecer pensando mal dos gays. E o desejo pelo mal deles pode perdurar muitos anos. E, inclusive, ganhar a forma de ato destrutivo em relação ao objeto do seu ódio.

Platão, um homem da Grécia antiga, entendia os seres humanos como mortais. Os deuses eram imortais. Eles eram poderosos, sensuais, guerreiros, trabalhadores, e permaneciam sendo essas coisas para sempre. Se por um lado os deuses possuíam estas características dos homens, por outro guardavam o privilégio de nunca deixarem de existir. Os homens podem ser aquelas coisas, mas as são passageiramente.

O que nos tornamos durante uma vida, os acontecimentos que nos deixam memórias, particularmente as memórias que entendemos como formadoras da “minha identidade”, além das ideias e emoções que consideramos nossas próprias, compõem o que modernamente chamamos de eu, de self. Esta construção nos dá uma sensação de permanência para nós mesmos.

No entanto, quando morremos, aonde esse eu vai parar? Quando mudamos de ideia, ou uma forte emoção nos deixa, abraçamos a posição ou a pessoa a quem antes criticamos. Somos os seres de Platão, ou melhor, os seres de Heráclito, por estarmos no rio das mudanças.

No diálogo Alcibíades I, o jovem de mesmo nome não era mais tão jovem, assim, e expressava a Sócrates a sua intenção de tornar-se um estadista. Julgava ele ter conhecimento do necessário para ser um bom político. Contudo, na conversa com o filósofo, após algumas malgradas tentativas de definição do que é a justiça, Alcibíades já não tinha mais a certeza de antes. Ele vacilava no conhecimento sobre a justiça. Sócrates diz que é preciso cuidar da alma que conhece as coisas, de modo a que se possa aspirar a qualquer posição social. E para cuidar da própria alma é preciso conhecê-la. Como cuidar, como aprimorar aquilo que não se conhece?

A questão de Sócrates, o entanto, não aponta para “quem” eles são, ou seja, não quer saber sobre as individualidades Sócrates e Alcibíades: Sócrates pergunta pelo “o que” eles são. Esta pergunta trata ambos como essências, além de coisas comuns, não individualizadas.

A diferença, aqui, é entre os termos “auton hekaston”, que quer dizer “cada mesmo individual” e “auto to auto”, que quer dizer “o mesmo, em si mesmo”¹. O indivíduo pode se dizer o mesmo ao longo da sua vida, sem transformação. Pode, também, reivindicar exclusividade para a posse dos elementos que aponta como seus. Mas, como eu disse, o “cada mesmo individual” deixa de existir quando morre.

Platão entendia que os seres humanos são encarnações de almas imortais em corpos mortais. Durante uma vida, vai ocorrendo a formação de uma individualidade, como uma alma superficial. Contudo, a alma imortal, “a mesma, em si mesma”, permanece em mim. E essa alma não me pertence, pois sua natureza é divina. Ela está temporariamente em mim. E é em direção a ela que Sócrates empurrava Alcibíades, afastando-o do saber sobre a própria individualidade, saber superficial, aproximando-o do saber sobre aquilo o que realmente era ele.

Cada homem tem uma alma, a sua alma, a sua individualidade. Mas cada um, tendo uma alma, tem a mesma coisa do que os outros, a alma em si. Temos, essencialmente, a mesma substância. E essa substância pertence a uma realidade que não é a da terra. Aqui, o amor e o ódio duram frações de segundos que julgamos eternos e decisivos. Acreditamos demais em nossos eus, e matamos e morrermos por eles. Fazemos mal a nós e aos outros, pelas nossas convicções. Nossa alma imortal não conhece os parâmetros que tentamos colocar a nós mesmos. Ela continuará vivendo, ao morrermos, deixando de lado tudo o que nos tornamos em vida.

A alma do filósofo, especificamente, antes de estar em seu corpo, sobrevoava a morada dos deuses, o Mundo das Formas, das causas e dos modelos do que há na terra. Lá, no Mundo das Formas, está o Belo, a Justiça, a Sabedoria, além das outras formas. O que há na terra é imperfeito, enquanto as Formas são perfeitas. São as melhores de cada coisa. Por serem as melhores, sobre todas as formas há a forma das formas, o Bem. A alma do filósofo tem conhecimento de tordas aquelas virtudes divinas, e também do Bem.

Durante a sua vida, o filósofo estranha o mundo e a si mesmo: que é este discurso, esses atos, esse sentimento, dele ou dos outros? Ele vê o particular, o caso, inserido no geral, universal. Ele busca o universal. Quando vê algo bonito, pensa na Beleza. Quando se impressiona com um texto, impressionou-se por recordar da Sabedoria. Diante de uma injustiça, ele se sente inexplicavelmente mal. Bem, quase inexplicavelmente: ele sabe que a Justiça foi ferida, e isso doeu em sua alma.

O filósofo vive querendo que os casos particulares sejam mais próximos da Justiça, da Beleza e da Sabedoria. Ele quer ser assim, e que os outros também o sejam. A mortes de gays em Orlando (http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/06/policia-diz-que-ataque-em-boate-nos-eua-deixou-50-mortos.html) nos tocam de uma forma que não sabemos explicar direito. Algo de muito ruim aconteceu, sabemos. Algo que não deveria acontecer, em um mundo que, por algum motivo, queremos que seja Justo, Belo e Sábio. Um mundo que seja o melhor que as pessoas puderem fazer.

O acontecimento de Orlando contraria esse nosso ideal. Quando pessoas acham-se grandes em suas pequenezas, fincando-se em ideias e afetos ruins, levando a atos desastrosos, cada um de nós, sendo ou não filósofos, lamentamos que o nosso mundo tenha se tornado um pouco mais injusto, feio e ignorante. E um mau lugar para se viver.

A morte de cinquenta pessoas é uma tragédia para além dessa quantidade de pessoas mortas: é um atentado contra o Bem que queremos para nós e o mundo. É uma catástrofe imensurável.


1 - Ghiraldelli Jr, Paulo. Sócrates, pensador e educador: a filosofia do conhece-te a ti mesmo. Ed. Cortez, 2015.


Ps.s: Cuidado com os filósofos que escrevem contra um mundo melhor. Eles querem que você seja alguém pior.

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