quinta-feira, 23 de junho de 2016

Vontades divididas


Estou esperando o bolo de aipim como coco terminar de assar. Enquanto o preparei, ouvia Belchior. Não se faz mais músicas como ele, na MPB. Ele fala muito sobre beijar a menina dele. Sobre ver a cidade, de paralelas que nunca se encontram. E ele volta ao coração nordestino, com quem via a sessão das cinco.

Descasquei e ralei mais de dois quilos de aipim, mais um coco, pensando em deixar o bolo bom. Amanhã meus colegas de trabalho deverão elogiar. Pensei nas minhas meninas, que também adoram bolo, comendo pipoca com coca, no quarto. Ando fazendo muitos bolos para levar para o trabalho. Ando pensando muito nos colegas. E minhas meninas, a quem já muito dediquei minhas comidas, há um tempo que não ganham nada.

Cada ralada era um pensamento neles e nelas. E pensamento na ralada, para não pegar no dedo. Quem come pensa coisas particulares. Eu, cozinheiro, suponho que quem come pense na comida, em mim. O tanto que pensei na sensação que terá quem come, é o tanto que, na hora em que estão comendo, atribuo de pensamento deles voltando sobre mim.

Freud falou que a libido, nossa energia amorosa, é hora jogada para os objetos, ora jogada para o eu. Amamos nosso eu como queremos que os outros nos amem. Amamos os outros, para que eles nos amem de volta. O espelho é bate-volta.

A vontade do eu está comandando esses bolos, feitos, a cada etapa, pensando nos outros e em mim, mas sempre em mim. Quero reconhecimento, que nunca se satisfaz. Agostinho disse que nossas vontades do eu nunca se satisfazem. A alma lança um fraco comando ao corpo, e ele já responde, querendo cozinhar.

Como a sede das vontades, a alma, pode ter tanto poder sobre o corpo? E como a mesma alma não consegue exercer sua vontade sobre si mesma? Agostinho faz essas perguntas, esperando que sua alma consiga não perder-se nas inúmeras vontades do eu e do corpo. Ele quer que sua alma possa ordenar a si mesma para que busque as coisas de Deus, que proveem satisfação que não passa.

Tenho na lembrança os elogios que já recebi. Ainda hoje eles me servem. Estão durando, no meu eu. Mas, é verdade, Agostinho, que eu o quero de novo. Não digo que queira mais pois, quando faço algo pelo elogio, sinto que estou vazio dele, apesar de um dia ter estado cheio. Digo que quero de novo, como se fosse a primeira vez.

A insatisfação do homem o faz sentir as coisas como na primeira vez: o sabor do bolo, dos elogios, dos sorrisos, da música. Belchior cantava sobre o muito que um dia viveu. Apesar de querer essas coisas de volta, e estar cheio de lembranças, ele está vazio delas. Está vazio pois é capaz de senti-las como novas.

Meu eu é cheio de lembranças e vontades. Quer repetir os sucessos que um dia teve. Mas ele também está vazio pois, justamente por sua insatisfação crônica, toda a sensação do passado foi consumida. E ele quer as sensações de novo, por não as tê-las mais. Ele está com todos os sentidos prontos para novamente comer o bolo, e escutar falarem com ele.

P.s.: Dessa vez, felizmente, a quantidade de massa não coube na forma, e sobrou para uma fornada para as minhas meninas. Eu estava dividido entre a vontade de agradar os colegas e a vontade de agradar as minhas meninas. Eu estava dividido, eu era dois, duas vontades. Agora, conseguirei satisfazer ambas vontades. Meu eu, que é ao menos dois, eu o sentia como um dividido. Mas não sentirei mais minha divisão. Terei a sensação de que sou mesmo um.

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