quinta-feira, 30 de junho de 2016

A metáfora de Sansão


Palavras colocam-nos em certos climas. E estão acima do nosso entendimento. Determinam o que fazemos e o que sentimos. Os esforços dos homens por conhecê-las por completo, o seu sentido, são em vão.

Os israelitas oscilavam entre a adoração a deuses, o que lhes enfraquecia enquanto nação e os expunha à escravidão, e o refúgio em Javé. Repetiam ciclicamente o pecado, o castigo, o retorno à consciência dos feitos de Javé pela liberdade deles e o clamor pelo auxílio Dele.

Cada geração falhava na tarefa de quebrar este ciclo, o que seria conseguido caso eles se lembrassem dos sofrimentos e das lutas dos seus antepassados, e prosseguissem com as orientações de Javé, que levam à liberdade e à vida.

Um dos juízes de Israel, homens a serviço desta busca por consciência, foi Sansão. Havia quarenta anos os israelitas eram dominados pelos filisteus. Um homem de nome Manué não possuía filhos: sua mulher era estéril.

"Você é estéril e não tem filhos, mas ficará grávida e dará à luz um filho", disse a ela um anjo de Javé. O anjo também disse a ela para jamais passar a navalha na cabeça do menino, pois desde o seio da mãe ele será consagrado a Javé.

Do começo ao fim de sua vida, Sansão cumpre um propósito. E nada, nem mesmo ele, pode cortar de si mesmo algo tão insignificante quanto cabelos. O propósito de Sansão, o sentido da sua vida, foi transmitido à mãe dele pelo anjo de Javé. As palavras do anjo não são claras, não são explicadas. Porque não cortar o cabelo? Como ela ficará grávida?

Ela foi contar ao marido: "Um homem de Deus veio me visitar. Pela sua aparência majestosa, parecia um anjo de Deus. Eu não perguntei de onde ele veio, nem ele me disse o seu nome." Manué buscou um encontro com o anjo. E o encontrou. "'Qual é o seu nome, para que possamos agradecer a você, quando suas palavras se realizarem?' O anjo de Javé retrucou: 'Por que você está querendo saber o meu nome? Ele é misterioso'".

O caminho de Sansão, feito por suas decisões, seguiu, sem que ele ou qualquer pessoa adivinhasse aquele propósito de Javé. Eram palavras cujo sentido não podia ser apreendido. Um dia, indo a Tamna, Sansão encontrou uma jovem. Quis casar-se com ela. Os pais dele lamentaram que escolhida do filho fosse moça filisteia.


Próximo a um vinhedo de Tamna, Sansão deparou-se com um leaozinho, que rugiu ao vê-lo. Com facilidade e usando as próprias mãos, Sansão despedaçou o animal. No dia em que se casaria, Sansão tornou a passar próximo daquele vinhedo. Encontrou a carcaça do leão. Nela muitas abelhas haviam feito um ninho. Sansão recolheu um punhado de mel e o foi comendo pelo caminho.

Na casa da noiva havia um banquete. Aos presentes, Sansão propôs uma adivinhação: "Do que come saiu comida, e do forte saiu doçura." Trinta peças de linho e trinta roupas de festa seria o prêmio daquele que adivinhasse, traduzisse as palavras enigmáticas em palavras inteligíveis.

Sem conseguirem adivinhar, alguns dos presentes no banquete disseram à noiva de Sansão que ela deveria fazê-lo dizer a resposta ou eles ateariam fogo nela e na casa de seu pai. Ao choro dela, Sansão responde que nem aos próprios pais ele dissera.

Após muito pranto, a moça enfim obtém a resposta e, ao saberem dela, os homens contam-na a Sansão. Ele então vai à cidade de Ascalon, mata trinta homens, tira-lhes as roupas e as dá para os que disseram a resposta. Cheio de raiva, Sansão retorna à casa do pai.

Dias depois, Sansão torna a visitar a sua mulher. O sogro, porém, não lhe deixa entrar, dizendo que dera a filha a um daqueles homens do banquete, pensando que ele não mais gostasse dela. O sogro ofereceu-lhe a filha mais nova, dizendo-a mais bonita.

"Desta vez não sou culpado do mal que vou fazer aos filisteus." Ele pega trezentas raposas, amarra-as em pares, pelos rabos, e em cada par amarra uma tocha acesa. O fogo acabou com as plantações dos filisteus. Os filisteus identificaram o culpado, e atearam fogo na mulher a quem Sansão desejava, e também na casa do pai dela. Sansão matou-os todos.

Sansão lançara palavras misteriosas para dizer o que havia ocorrido com ele. Despertara a cobiça e a maldade dos filisteus. E o que os filisteus fazem justifica o massacre perpetrado por Sansão. Tal era o propósito de Javé, a fim de ajudar Israel. E essa ajuda estava sendo providenciada sem que lhes parecesse ser obra Dele.

O povo, então, poderia começar a ver a si mesmo como capaz de realizar ações que cuidassem da justiça e do estabelecimento gradativo de uma situação de maior liberdade para eles. De dependente de Javé, o povo passaria a agente dos seus próprios propósitos, tendo em Javé um norte.

Três mil filisteus apareceram no rochedo onde estava Sansão, querendo levá-lo preso. Os homens de Judá questionaram-no sobre o que ele fez aos seus dominadores. Amarram-no com duas cordas novas e entregam-no aos filisteus.

Os filisteus o recebem em festa. As cordas que amarravam Sansão ficaram como fio de linho queimado e, pegando uma queixada de jumento, que estava perto, Sansão matou mil daqueles homens.

Tempos depois, Sansão conheceu uma mulher chamada Dalila. Os chefes dos filisteus não demoraram a aliciá-la. No próximo encontro que teve com Sansão, Dalila passou a pedir que ele dissesse o segredo de sua grande força, e como ele deveria ser amarrado para ser dominado.

Aqueles homens e Dalila queriam que tudo fosse dito, de modo a que eles pudessem tomar providências em relação a Sansão. Do jeito que as coisas estavam, a explicação do que Sansão era capaz de fazer estava encerrada em uma boca que não falava com qualquer homem e, quando o fazia, com homens bons, era em um encadeamento de palavras cujo sentido lhes escapava.

Por três vezes Sansão disse a Dalila de que modo ele deveria ser amarrado, para ser dominado. A cada vez, ele dizia um modo diferente. E ela o testava, chamando filisteus para pegá-lo. Em todas as vezes, Sansão conseguia facilmente livrar-se das amarrações.

Dizendo duvidar do amor dele, e insistindo incessantemente, Dalila consegue ouvir de Sansão que se uma navalha passasse na cabela dele o tornaria fraco como qualquer homem.

Os filisteus deram dinheiro a Dalila. Cortaram todo o cabelo de Sansão, e a força dele desapareceu. Ele nada conseguiu fazer contra seus atacantes, que o prenderam e lhe furaram os olhos. Para ele, Javé o abandonou.

Sansão foi preso com duas correntes de bronze e posto na prisão, para girar a pedra do moinho. Os chefes dos filisteus organizaram uma grande festa, com um sacrifício ao deus Dagon. "Nosso deus nos entregou nosso inimigo Sansão, aquele que devastou nossas terras e multiplicou nossos mortos."

Chamaram Sansão para trazer-lhes divertimento, dançando, cego e seminu, entre as duas colunas principais do templo. Sansão pediu ao moço que o transportava que o pusesse num lugar onde ele pudesse se apoiar nas colunas. O templo estava repleto de filisteus, incluindo seus chefes. Eram ao todo três mil homens, vendo Sansão dançar.


Sansão invocou a Javé que permitisse que, de um só golpe, ele pudesse vingar-se dos filisteus. "Que eu morra junto com os filisteus!" O cabelo de Sansão já havia crescido um bocado. Ele empurrou as colunas com toda a força, "Desse modo, ao morrer, Sansão matou muito mais gente do que tinha matado durante toda a sua vida." Sua vida levou a isso, a cumprir as palavras do anjo.

Sansão era forte e doce, como um leão cheio de mel. Tomando por Lacan, a partir do seminário "A função criativa da palavra", essa metáfora não pode ser entendida como uma comparação entre Sansão, o leão o mel: toda metáfora emerge implicando mais do que se espera dizer, por isso com essa metáfora estamos a dizer que a força de Sansão surpreende por ele ser um homem bom, e que é surpreendente que ele permaneça doce por toda a vida, mesmo sofrendo e perpetrando violentos ataques.

A ambiguidade de Sansão está na violência que se anula pela doçura do homem, e na doçura de um homem que morreu por uma grande vingança pessoal e do próprio povo. Cada elemento, aí, ganha sentido no interior do mundo simbólico que envolve Sansão."Cada vez que estamos na ordem da palavra, tudo que instaura na realidade uma outra realidade, no limite, só adquire sentido e ênfase em função dessa ordem mesma" (LACAN. O seminário I, p.310).

A metáfora do leão e do mel emerge ao ser de Sansão. Ele fez esta associação, e presentou a quem o ouviu uma confissão dele mesmo. Os símbolos trazidos por ele são o ambiente no qual ele emerge como homem. Ele invoca a si mesmo quando diz aquelas coisas. Traz a si mesmo à tona, faz-se comunicável e inteligível.

As palavras, porém, são coisas que se lançam aos homens. O que elas significam é o que eles creditam a elas. Elas, em si mesmas, são anteriores a tudo. Os homens nascem num ambiente simbólico. E esse nascimento, diga-se, com Sloterdijk, começa a ocorrer quando ainda estamos no útero.

Sem a dimensão simbólica, toda comunicação seria a transmissão mecânica de uma informação: eu te digo x, e você entende x; caso você entenda y, identifico o erro e digo x de uma outra maneira. Nossa comunicação não é assim. Ela é cheia de mal-entendidos, ambivalências, ironias e meias-verdades.

Algo mais do que um sentido está em jogo no que dizemos. O que dizemos sempre nos envia ao próximo ato de dizer mais, navegando pelo simbólico. Seja humano, seja divino, esse ambiente é misterioso para aquele que, mesmo tomando-se como entendedor de tudo, é uma criação. Uma criação que, tudo bem, é do próprio ser a quem chamamos de indivíduo, mas que se dá com a sua parceria com outros seres.

Nos fazemos a partir desse ambiente de co-criação, entre homens, incluindo ou não Deus. Expressamo-lo em palavras, metáforas.

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