segunda-feira, 4 de julho de 2016

Os prazeres do morto


Está além dos nossos poderes impedir a morte de alguém querido. Internamos um doente, ou ministramos a medicação com todo o cuidado. Mas se a doença quiser, ela ganha. Ganha rápido. A velhice é outra que sempre vence, embora mais lentamente.

Isto são fatalidades. Acidentes também ocorrem quando querem, embora a ocorrência deles dependa de uma ação humana sem a intenção de causar aquele mal. O homem agiu mal, cometeu alguma imprudência.

Mas na doença o homem não fez nada. A doença ou a velhice vieram comendo o corpo até que ele desligasse. Desligou antes de ser completamente comido. E se deixarem o corpo lá, ele vai terminar de ser devorado, transformado em corpo novo, tomado pela doença.

Doença é o mau funcionamento do que consideramos corpo. Mas o corpo totalmente tomado pela doença torna-se um outro corpo. A vida do primeiro corpo cessou, e começou a vida do segundo. O corpo de um defunto é totalmente duro. A pele fica acinzentada. Ele vai se decompor, vai acabar mais rápido do que acabou o primeiro corpo.

Esta é a vida após a morte. Não se fala dela. Fala-se de viagens, carros, trabalho, comida, sexo, mas só se fala em vida quando se lembra da morte desta vida. Nesta hora, a respiração falha, o coração pára, e o outro faz uma violenta massagem para religar. E religa. O vivo continua, sai do hospital.

Ele não consegue andar, não consegue falar rápido, não pode comer doce ou fumar. Ele está vivo. Não é mais o homem. Não é mais aquele que saía, dançava, ganhava dinheiro, sentia sabores. É um vivo. E com uma bela história atrás de si.

"Cada destino é apenas um estribilho que se agita em torno de algumas manchas de sangue." (Cioran, p.33) Ainda está vivo aquele grande homem. A todo custo os filhos o mantém vivo. É para eles provarem seu poder. E provar que não consideram o dinheiro mais importante do que ele, deixando tudo no hospital e em remédio.

O vivo tem medo de morrer, mas acharia muito melhor pegar uma parte daquele dinheiro e daquela energia que gastam com ele e irem farrear. Terem uma tarde com mulheres, salaminho e cigarrinho. No filme Ghost (Jerry Zucker, 1990), o fantasma com cara de quem morreu de câncer diz que daria tudo por um cigarrinho.

O homem tranquilamente entrega a si mesmo pelo prazer. O prazer que passa pelos sentidos, vira memória com poder de "reexcitar" um pouco o corpo, e então vira memória sem sensações. "Tendo câncer avançado, fumei gostosamente um cigarrinho". Até que aquele ser que fala acaba.

Condenados à morte nos EUA têm direito a uma última refeição. Freud, em Totem e Tabu, conta que o guerreiro que mata um outro guerreiro chora por esta morte. Ele não quer que aquele espírito lhe retorne o mal que lhe foi causado. O seu assassino mostra-se sentido com o que fez, e lhe faz oferendas. Nas sociedades tribais antigas se mantinha a crença de que os espíritos invejavam os vivos, justamente por eles terem o que lhes falta: a fruição das coisas.

Quando pensamos na morte, imaginamos uma vida sem a possibilidade de ter nada do que se gosta. Não nos vemos como os mais afortunados dos seres, mas sem dúvida nos consideramos mais afortunados do que os mortos. E essa diferença está na fruição de um e na carência de outro.

O que chamamos de morto pode ser, na verdade, um tipo de vivo. Sabemos, contudo, que ele não fala. E suponho que não se lembre da vida anterior. Há quem suponha que ele ainda se lembra, está em algum lugar para ficar lembrando e até sentindo coisas. E que os vivos que falam sentem esses vivos que não falam.

O vivo que não fala não pertence mais ao vivo que fala. Se ele por um momento falasse, o que seria? "Deixa eu dar um ponto final naquele trabalho, fazendo-o ganhar sentido para todo o mundo."; "Deixa eu pedir um remédio, sei lá, pra viver mais ou pra diminuir o açúcar do meu sangue, deixando-me comer doce." Bem, deve haver mortos neuróticos.

Mas também deve haver os que, ao terem visto que com toda a construção de uma biografia, de toda briga com a mulher amada, de toda renúncia ao prazer ou de todo cuidado com a manutenção da vida, inexoravelmente deixaram de viver, apenas pediriam o prazer transgressor de uma lei, de uma moral ou da saúde: tentariam roubar um banco, simplesmente beijariam a esposa, sem falar nada, fariam uma suruba ou encheriam a boca de brigadeiros.

O poder sobre o próprio prazer é algo a que abrimos mão, justamente por ser o único que verdadeiramente consegue o que quer.

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