sexta-feira, 22 de julho de 2016

Médico não chora


Alguém que estuda cozinha saboreia melhor pratos, do que outra pessoa. Alguém que estuda pintura tem a melhor apreciação para quadros. Um dentista repara mais na perfeição de um sorriso. E em dentes amarelados e tortos. Um médico curte ver alguém saudável. E lamenta ver alguém muito doente.

As opiniões sobre o que seja uma comida boa variam pouco. Qualquer pessoa poderia concordar com a opinião de um gourmet, ou dizer que o prato dele é o melhor. As opiniões sobre o que seja um belo quadro talvez variem mais do que as opiniões sobre uma comida boa.

Muitos diriam que um outro quadro, uma hq ou até uma capa de disco são mais bonitos do que o apontado pelo especialista em pintura. O que faz um belo sorriso é o rosto que o contém, se está com ou sem batom, as expressões que a boca faz e as palavras que ela fala.

Muitas coisas levam nossa percepção de sorrisos para um lado ou para outro. Neste assunto, a opinião estética do dentista acaba sendo pouco levada em consideração. Ah, mas o dentista avalia um sorriso não só pela estética, mas pelo que ele demonstra de correção e também de saúde dos dentes. Quando a isso, ninguém compete com o que o dentista diz.

Mas, quando falamos de um elemento do corpo do homem, o que é falado se diversifica: o brilho intelectual, atlético, moral e físico. E a maneira como um órgão ou o organismo funcionam, realizando bem suas funções ou sendo capaz de manter a vida do corpo. O que é dito por pessoas que estudam o funcionamento e a saúde do organismo é considerado não como opinião, o que eu ou você podemos dizer, mas saber técnico.

Um cardiologista pode me dizer, enquanto andamos no shopping, que uma blusa na vitrine está cheia de corações, sem que eu ache que ele está falando do órgão com o mesmo nome. Ali ele não é cardiologista. Mas em seu consultório o que é nomeado de coração, ou de bom coração, tem um sentido específico.

Um coração que a mulher desse cardiologista desenhe para ele, no meio de uma mensagem, deixa-o comovido. Ele sorri, ele chora, ele retribui. A imagem do coração de um paciente o deixa atento. Ele não se comove, e sua ação é uma só, técnica.

Os saberes técnicos, especificamente biomédicos, sobre o organismo humano, levam a discursos e a ações específicos e sem a variabilidade que outras pessoas podem demonstrar quando tratam do "humano".

Uma pessoa que esteja morrendo será vista, chorada e falada de uma forma pelo evangélico, outra pelo católico, outra pelo indígena, outra pela criança da cidade, etc. E cada um tomará uma atitude diante dele. Já o evangélico, o católico, o indígena ou a criança que sejam médicos, se forem realmente médicos, farão uma mesmíssima intervenção.

Um médico que trabalhe em CTI diz não se sensibilizar mais com a morte de alguém. Ele passa os dias vendo organismos entrando e saindo, muitos saindo sem vida. Preocupa-se ele em estar perdendo a capacidade de "ser humano". Cachorros permanecem, tristes, nos locais onde viviam seus donos, depois que estes morrem.

Um filho despede-se de sua mãe, mas despede-se apenas da materialidade dela, mantendo-a consigo, na forte experiência que ele ainda tem dela.

O médico de CTI não quer perder essa vinculação emocional e espiritual com os seus queridos, ou com pessoas estranhas que bem poderiam ter se tornado seus queridos. Seria como se ele também perdesse a ligação emocional e espiritual com todos os outros homens.

Os pacientes continuam saindo da CTI, alguns mortos, outros vivos. E o médico sem chorar pelos primeiros ou comemorar pelos segundos. Ele olha para aparelhos, exames e papéis. Estaria ele se tornando um aparelho a mais, apenas um órgão naquele organismo que é a CTI?

Lá não é local de realizar ações diversas, as intervenções devem ser precisas e suficientes com os seus objetivos. Os corpos que lá adentram ou são de cuidadores ou de doentes de "funções vitais".

O CTI, junto de todos os que passam por ele, são a plena realização de um saber especializado. Lá não há pessoas.

Se um médico de CTI diz estar preocupado em "não ser mais humano", responda que ele assim diz por estar dentro de um CTI, ou ainda vestido de médico. Ele não está em casa, de shorts e sem camisa.

Ele não está com sua mulher e sogra num restaurante. Ele não está olhando para alguém a quem acabou de conhecer, encantado com a conversa dele.

A morte súbita de alguém, nessas situações, traria o desespero dele. O momento de indecisão. Faria o homem chorar. Assim espero.

Só depois é que ele colocaria a roupa de médico.

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