quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Indivíduo digital


Cada pessoa possuía uma vitrola. Quem estivesse perto, compartilhava o som. De uso individualizado era o walkman, depois o discman, depois o aparelho de mp3. O personal computer, a despeito do nome, também era de uso da família. Os aparelhos sonoros estimulavam os ouvidos e os olhos do usuário. Com as máquinas fotográficas digitais ocorria o oposto: elementos nossos eram captados e convertidos em imagens. Mas ainda existiam na razão de uma por família, servindo à mulher e aos filhos, operada pelo pai. As fotos iam para fotologs e redes sociais. Assim, o indivíduo começou a estimular a máquina, ao invés de apenas ser estimulado por ela.

Cada um passou a ter o seu perfil, e também o seu computador. O celular, que há tempos já era receptor dos estímulos de apenas uma boca, ofereceu-se a ser câmera fotográfica individualizada, captadora das imagens apenas do seu dono. As selfies explodiram, como um ato de colocar a câmera para namorar o seu proprietário. Câmera fiel, faz a imagem que o indivíduo quer ver dele mesmo.

Ser famoso era vontade do jovem. A criança fantasiava o que assistia. O jovem queria estar na telinha. O adulto não tinha tempo para pensar em outra coisa que não o trabalho não espetacularizado. O velho, enfim, podia ser espectador (embora alguns fantasiassem, como a criança). Esta adultez demarcada pela separação entre show e trabalho não existe mais: todos queremos mostrar o que fazemos.

Qualquer emprego que se tenha rende selfies do percurso de ida, da mesa do escritório, do almoço, da conta do almoço, etc. Sou Fulano da Silva, tenho esta imagem para mostrar, e a partir dela eu e você vemos por onde e com quem tenho andado, o que tenho feito e o que desejo fazer

A imagem, contudo, não deve mais ser minha. Eu é que devo ser a imagem. O empregado com nome e sobrenome está morto. Eu sou uma marca, símbolo de uma empresa, ou seja, de uma infinidade de ações distantes do conhecimento de quem quer que seja: ninguém controla meu cartão de ponto, ninguém sabe quem são meus clientes, ou meus lucros e perdas. O que há para ser visto é o que preparo para mostrar, que são meus produtos, minhas ações de marketing.

Baseados naquilo, pessoas me elogiam. Rio por dentro, pelo elogio e pelo elogiador não saber tudo o que fiz. Eu também não sei tudo o que fiz, perdi a conta das noites sem dormir. Eu sei de mim mesmo tanto quanto o cliente sabe, que é a marca e todos os estímulos de marketing associados a ela. A marca é "no strings attached", com relação a mim e às outras pessoas. Não há mais eu e outras pessoas. Há a marca, construída por uma porção de feitos invisíveis, que são lixo, e por imagens combinadas aos elogios e demandas.

Nunca houve um sujeito como esse ser digital, pois, ao mesmo tempo em que oferta imagens e recebe elogios e demandas por mais imagens, oferece elogios às imagens que recebe, para receber, em troca, apreciação.

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