segunda-feira, 8 de agosto de 2016

O luminoso corpo de Davi


Josué, quando precisou finalizar seu ataque aos filisteus, pedira à Javé que fizesse o sol e a lua esperarem para trocar de posição, no céu. Seu ataque deveria ser às claras. O que é do conhecimento de Javé, o que não precisa ser escondido de ninguém, certamente é bom. Só os perversos atacam à noite.

Por duas vezes Davi teve a oportunidade de matar Saul, que o perseguia furiosa e incansavelmente: a primeira vez foi quando o rei entrou numa gruta, onde se escondiam Davi e seus homens, e Davi apenas cortou-lhe um pedaço do manto; a segunda vez foi quando Saul e sua tropa dormiam pesadamente em um acampamento, e Davi aproximou-se e pegou a lança e o cantil dele. Nas duas ocasiões, Davi logo depois apareceu para Saul e seu exército dizendo-lhe que Javé havia entregue a vida do rei em suas mãos, mas que ele mesmo não poderia atentar contra aquele que fora escolhido por Javé.

Em Davi não havia um pingo de vontade de matar Saul: mesmo no escuro da gruta, ou no torpor do sono do outro, ele nada fez ao rei. As situações favoráveis não mudavam sua intenção. A lateral do corpo de Davi, frequentemente representada como estando desnuda, não tem gordura, pelos ou músculos, ou seja, não há qualquer sinal de um corpo de homem. O homem tem o aspecto de sujeira: a sombra que fazem os músculos ou a gordura, ou o turvamento que fazem o pó e os pelos ou a distração causadas pelas manchas de velhice impedem que se veja nele a superfície virgem de um anjo. Um anjo age numa história, decide-a, mas não tem qualquer intenção. A Davi, a esta altura da história, só importa fugir de Saul, fazê-lo cumprir sua derrocada.

Rei Saul, quando do ataque aos amalecitas, desobedeceu as ordens de Javé quanto ao anátema (o extermínio de tudo o que fosse vivo, do povo conquistado, de modo a evitar contaminação cultural. Mas um sentido mais profundo do anátema pode ser o combate da ambição aliada à desobediência. Ao homem cabe ser ambicioso, porém mantendo a obediência). Samuel avisou Saul que Javé arrependera-se de tê-lo feito rei, e que passaria a estar com Davi, e não mais com ele.

Javé agora mandou um espírito mau para Saul, turvador de sua consciência. Saul era frequentemente acometido de crises, e justamente o objeto causador do seu opróbrio, Davi, era terapeuta dele, tocando harpa para acalmá-lo. Na pintura acima, de Ernst Josephson, Saul tem a face escurecida e apontada para baixo, como quem tenta manter dentro da cabeça as próprias intenções. Davi tem a cabeça erguida e o corpo desnudo. Seu tronco seria o meio pelo qual Davi faria qualquer ação, boa ou má que fosse. O movimento das suas fibras o denunciaria.

Mas, nos retratos de Davi, principalmente naqueles em que está com Saul, ele está com o corpo relaxado, como se o que fizesse não estivesse em contradição com sua vontade, pois, se estivesse, ela tentaria puxar o corpo dele para fazer outra coisa e as fibras do seu tronco se retesariam. No quadro de Josephson, a único movimento causado por Davi é o das costelas da harpa.

Davi simplesmente está ali, tocando harpa, com seu corpo totalmente transparente. Já Saul é o tormento daquele que vive o prolongamento da punição pelo próprio erro. A perseguição a Davi é a ação que lhe resta como rei. Um líder derrotado dedica-se a perseguir inimigos imaginários, que o aterrorizam.

Algumas vezes Davi fugitivo confrontou Saul com a intenção de ambos, tentando fazer o rei ver a clareza da intenção do jovem. Mas Saul insiste em querer eliminar Davi, à medida que sabe que ele mesmo será eliminado.

Saul não sente inveja de Davi por seu crescente prestígio, pois seus olhos estão voltados para o terror nele mesmo. Caim invejou Abel, por ele ter sido elogiado por Deus, enquanto Caim é que se via como merecedor disso. Qualquer um diria que o trabalhador Caim merecia o elogio mais do que o irmão. Mas o funcionamento das coisas escapa ao entendimento dos homens. Deus escolhe quem ele quer. Ou talvez escolha justamente aquele que achamos que mereça menos, na razão de que nos seja dada alguma lição sobre nossa vontade de controlar os acontecimentos.

A ação de Saul não era fulminante como a de Caim. A tortura de sua alma era longa, e sua perseguição a Davi durou bastante tempo. Ele não se perguntava sobre sua desobediência a Javé, o que seria o motivo de ter sido por ele abandonado. Ele pensava apenas em sua nova tarefa de líder, que era eliminar Davi. Seu propósito particular deu a direção do seu governo. O egoísta perde-se em fantasmas internos. Saul queria recobrar a paz. Então só via à sua frente matar a pomba branca.

Nenhum comentário:

Postar um comentário