segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Pai por um dia


"Seu pai disse que viria hoje, mas ele não vai aparecer". Ninguém diz uma verdade dessas à criança. À criança se dá o direito da inocência.

Inocente é aquele que não sabe das coisas. Mais especificamente, não sabe da intenção das pessoas. Ou do funcionamento do mundo. Ignorante é aquele que não sabe matemática ou é bruto no trato com os outros. Burro é quem não sabe matemática e nunca virá a saber, pois empaca.

O inocente não está sendo avaliado por sua capacidade de aprendizagem de conteúdo escolar. E é uma pessoa doce, que se deixa levar pelos outros, acredita neles.

Não tem outro jeito, a criança precisa esperar pelo pai que não virá. A criança espera algo, por isso espera um pai. Acredita que ele dará "isso" a ela. Talvez esse "isso" seja a virada na condição, dela mesma, de ser uma "sem pai" para a de "tenho pai". Ela terá um pai, a criança acredita. O pai chegará, o dia com ele será ótimo, e ela dormirá sabendo que o pai faz parte da sua vida.

Quando uma criança fala com outras crianças, ela lança os momentos que viveu com sua mãe, sua avó, e também com seu pai. Um pai é meio prático demais, meio explicado demais; meio bonzinho, meio severo; gosta de ficar no sofá, gosta de levar a criança pra um lugar legal; gosta de ficar sozinho e em silêncio, gosta da alegria saltitante da criança; etc. Ela percebe tudo isso. E conta aos amigos as coisas que seu pai lhe disse, ou que ela fez com ele.

A mãe proporciona boas histórias. Assim também é a vó. Mas são histórias de casa. O pai tem potencial para histórias maiores. Ainda mais o pai com quem não se mora. Ele é um marinheiro que voltará com histórias incríveis, objetos impressionantes e o melhor: com vontade de levar a criança para também viver isso! A criança quer o pai fujão quieto com ela. Assim, um dia eles poderiam fugir juntos, mas para voltarem à noite pois ela precisa dormir com sua mãe.

Já com o pai com quem se mora, mesmo que não seja pai biológico (ainda tem sentido falar isso?), a criança quer ser escutada e atendida. Quando ela fala "pai", é para evocar uma figura de proteção. "Pai, proteja-me do mal interno ou do mal externo, que me aflige". É o mesmo sentido do "pai" dito pela mãe ou pela vó: "Proteja a criança do mal interno ou do mal externo, que a aflige".

É fácil para uma criança chamar alguém de pai. A criança precisa de um pai, por precisar sentir-se bem e ter algo para levar aos amigos. Por precisar, eventualmente, proteger-se da frustração com a mãe. Mas a um pai é difícil dizer filho. O homem duvida muito de si mesmo. Ele se envergonha.

O homem gosta de estar com o filho, deixá-lo feliz, ensiná-lo coisas. Adora ser chamado de pai. Isto o faz sentir-se gerador de algo. Mas ele teme chamar a criança de filha. Teme o olhar dos que estão ao lado da criança. Este olhar lhe diz: "você diz filho, essa é a sua geração. Mas o que você tem feito por ela?". Este homem deixa-se perturbar pelo amanhã, ou pelo passado. Ele não confia se o que fará após aquele momento com o seu filho lhe permitirá que haja um novo momento com ele.

O homem acha que não está conseguindo gerar bem o filho. Não tão bem quanto a mãe dele o gerou. A mulher sempre gera o filho muito bem: se ele está vivo, a gravidez foi ótima; e é óbvio que a mulher não vai deixar o filho ao natural, nem ela ser primitiva a ponto de não vestir, não alimentar, não acariciar e não ensinar os rudimentos de educação ao seu filho. Então uma mãe não falha.

Já quanto ao pai, é muito comum ele ser covarde. E a criança sempre o perdoa, e acredita nele. A criança sempre acredita. Deixamo-la acreditar em Papai Noel, mesmo sabendo que um dia ela descobrirá que ele não existe. "O mundo tem algo mágico", é o que queremos que a criança pense, e que o adulto em que ela se tornará conserve isso. "Existe o bem máximo, alguém cuja única intenção é sorrir e dar presentes." (a exigência de ser um bom menino não é lá muito forte).

O pai tem as dificuldades dele, a criança fica à mercê. A mãe bem sabe disso, tenta ajudar o pai, mas também preocupa-se com a criança. E nunca diz a ela que Papai-Noel não existe. "De repente aquele homem toma jeito e vira pai"; "Um dia esse pai será um pai melhor."

Então a criança começa a esperar menos. Ela está fazendo outras coisas, arruma suas próprias aventuras. Um marinheiro que aparecesse nesse momento seria interessante de escutar, mas o garoto não largaria a própria vida para segui-lo. Pensaria em largar, pois ainda tem fantasias, mas não largaria.

Essa criança será como a mãe, que não é mais inocente, sabe que os outros prometem e não cumprem e que não se pode ficar à mercê deles.

Mas ela ainda conserva a pitada de esperança que a faz ser uma pessoa que busca fazer coisas boas, no mundo. E ainda esperar que aquele homem um dia seja pai. Ao menos por um dia. Com a ajuda dela.

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