quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Fernandinha no caminho das formigas


Escrevo para ser livre. Quem fica um pouco ao meu lado percebe que sou falante. Uma frase puxa uma ideia, que puxa uma reação, que puxa uma ideia e depois uma frase, e assim vai. No texto ocorre o mesmo. Minha ideia inicial transforma-se à medida em que vou batendo bola com o papel do Word. O resultado é livre inclusive de mim, que tive a ideia-start, aquela que me fez ir para a frente do pc. Escrevendo encontro o caminho do que quero escrever.

A plataforma da escrita, o outro indivíduo ou até eu mesmo são eixos com quem converso. O papel pode estar torto. Pode ter a seguinte frase sem poder se apagada: "Fã do Bolsonaro". Reajo a ela e escrevo a segunda linha. O outro indivíduo pode ter a mesma ideia fixa na cabeça. Se for alguém com quem não convivo muito, direi a ele algo sobre sua ideia fixa. Estas coisas não me desanimam.

Papel e pessoa são velhos conhecidos, cresci com eles. Literalmente, Fernanda Torres cresceu com Millôr Fernandes e Miele. Segundo ela (http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/02/22/mulher/), machões preconceituosos. Irresistíveis. Li Millôr. Um gênio. Fico só imaginando o quanto eu viveria se tivesse convivido com ele, como Fernanda. Eu me inibiria de escrever? Como Fernanda, eu sentiria amor por essas companhias, e sempre as louvaria.

Em meus textos sempre há o nome daquele que foi o meu parceiro mais evidente. Vivi num bairro em que o pipoqueiro, o velhinho doente do prédio, o dono da banca de jornal e o lavador de carros da concessionária eram os mesmos de anos. Machistas, homofóbicos, autoritários, militaristas. Eu ouvia de tudo. Eram meus companheiros de dia-a-dia, eu não os confrontava.

Hoje sou um observador paciente. Quando pequeno, via o caminho das formigas. A ideia vinha se desenvolvendo, subterraneamente. Quando chegava, a ideia era minha, para eu fazer o que quisesse. Não era do companheiro, não tinha que devolvê-la. Formigas não escutam.

Nunca gostei de violência, discriminação, e estas coisas injustas. Não sei com quem aprendi essa generosidade. Bem, talvez eu saiba... Não foi com nenhum companheiro humano em particular. Volta e meia o que eles diziam feriam essa minha sensibilidade, mas meu interesse por ouvi-los era maior. E no que lhes respondia, não mirava na mudança daquela ideia específica.

Mantinha minhas conversas leves, com meus queridos querendo falar mais coisas para mim. Eram tardes de sábado, com brisa balançando amendoeiras, Hoje continuo conversado, e com a mesma sensibilidade para a dor dos outros. A dor de qualquer um, mesmo a do bicho, da planta, do preso, etc. Talvez tenha ficado mais sensível. Isso que eu sou, que traz uma história predominantemente inconsciente, é o pano de fundo de tudo o que digo e escrevo.

Militantes feministas reclamaram do texto de Fernanda (um exemplo: https://medium.com/polemiquinhas-com-a-carol-patrocinio/ref%C3%A9m-uma-resposta-%C3%A0-fernanda-torres-71a5a1a5cbed#.4f2n2seyn). Disseram que, ao ter escrito que "a irrita o vitimismo do feminismo", ela ignorou os problemas das mulheres. Fernanda, inclusive, reconheceu isso e desculpou-se (http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/02/24/mea-culpa/). Eu não teria me desculpado: por alguma razão, o primeiro texto saiu daquele jeito. Tem uma dignidade a ser defendida. Não é para ser apagado. Ou será que o pedido de desculpas de Fernanda não é uma ironia, um fazer de conta de que dá o braço a torcer para as chatas? Pode ser!

Sim, eu disse chatas: todo mundo tem um pai escroto, ou pelo menos um tio, a quem ama e odeia. Essa complexidade é difícil traduzir em frases. Ocorre muito de uma filha brigar com o pai, acusando-o de machista. Mas ela mesma faz o namorado dormir na sala, pois "o pai não vai gostar dele no quarto". O pai é um caso sério, dessa moça. Quanto mais tiver algo engasgado para dizer a esse pai, sem saber como, mais responderá de forma confusa para quem cruze seu caminho.

As militâncias deram às pessoas uma gramática para as suas emoções e palavras presas. Um escoamento fácil, que situa bons e maus na história das mulheres, dos negros, dos gays, etc. Em troca, a militância, que é um espírito, exige engajamento. "Já que eu te dei o que dizer ao seu pai, agora te dou o que dizer ao homofóbico da esquina. A fala dele tem consequências ruins para os gays. Aponte isso para ele, para ele mudar." Por ter descomplicado a sua vida, a militância escraviza, obriga a trabalhar para ela.

Nunca fui complicado. Acho que o caso de Fernanda deve ser parecido com o meu: figuras que eu amo não são como eu gostaria, mas amo mais estar com elas do que persegui-las. Não jogo nelas a consciência pesada de uma militância. E minhas ideias vêm se desenvolvendo sem pressa. Mentira, quando estou em casa, corro para o pc.

Posso pensar em como as pessoas são autoritárias, e no problemas das mulheres. Uma coisa não tem diretamente a ver com a outra. Um homem que canta mulheres na rua pode ser amorosíssimo com a mulher dele, procurando sempre se antecipar aos desejos dela. No filme "Homens brancos não sabem enterrar" (dir. Ron Shelton, 1992), o personagem de Woody Harrelson acorda ao lado da sua namorada, feita pela Rosie Perez. Ela esboça que também irá acordar, mascando a própria boca seca.

Ele busca um copo d'água. Ao voltar, ela se revolta: se ela quer água, ela pedirá. Ele não tem que se adiantar. Aquilo é dominação masculina. Rosie brinca com o militantismo de filmes como os de Spike Lee, por exemplo, com quem trabalhou algumas vezes.

Os problemas das mulheres são coisas a serem resolvidas. Elas precisam de mais condições para serem livres. Cada minoria tem atravancamentos que é responsabilidade de todos ajudar. Alguns problemas das mulheres demandam resolução urgente. Aí o caso talvez seja criação de leis. Mas o feminismo, assim como outros movimentos, tem criado o problema da falta de socialidade. Você já reparou que quem se apresenta como militante geralmente é irritadiço?

As emoções da infância, que podem se expressar nessa gramática, não se esgotam. A criança tem ódio inconsciente pelo pai, e culpa consciente. A militância se oferece ao jovem que quer saber como expressar a vinda à tona, para a consciência, da própria agressividade. O ódio passa a ser o conhecido, e como o discurso militante é obsessivo, repetitivo, o amor ao pai não encontra chance de voltar.

É sinal de crescimento conseguir tomar distância de si mesmos, inclusive das próprias paixões. Observar a si mesmo. A má-consciência é, no caso aqui discutido, consciência engajada. Um pesado carrasco. O militante é quem mais sofre, nessa história. Um dia, quem sabe, ele possa andar devagar até a padaria, ver a mulher nua na capa do jornal, achar graça da manchete "machista", e não perder a leveza.

6 comentários:

  1. Interessante. Continue correndo para o seu PC, pois sua escrita é um convite à reflexão.

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    1. Geralmente evito comentar postagens de outras pessoas (pois evito me vincular a elas o máximo quanto posso), mas realmente..., sua postagem sobre a militância está fraca.

      Afirmar que o discurso militante é obsessivo e repetitivo por causa da necessidade de amor "paterno"? Você já ouviu falar em plausibilidade/parcimônia? Você não acha que acordar todas as manhãs já não seria, em si mesmo, um ato "obsessivo"? "E no limite havia o real e todos acordamos, certo?"

      É difícil um leitor acompanhar seu raciocínio quando seu texto passa a impressão de um sujeito completamente deslocado dos campos discursivos e políticos em que estes embates se travam.

      Seria o caso de não criticarmos a militância, sacralizarmos-a? Não necessariamente. Certamente há indivíduos que na militância encarnam conflitos supostamente "intra-psíquicos" (nunca efetivamente comprovados, mas sempre postulados pela psicanálise) de origem familiar, mas ao que me parece, nem sempre este é o caso, reduzir uma questão pela outra é o mesmo que dizer que o fulano roubou milhões de um povo por que tinha uma péssima relação com seus pais, ora, faça-me um favor.

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    2. A surdez, ou melhor, a repetitividade com que você trata as temáticas abordadas por militantes encerra primeiramente um desejo de efetivamente não saber de que tratam estas militâncias (afinal, elas são "graves", não divertidas e leves - e o que você queria, que a militância fosse um paraíso e que os temas abordados não gerassem desconforto em quem caminha lado a lado com as estruturas hegemônicas de nossa sociedade? Só falta você alegar que realmente não existem embates pelo poder entre as pessoas, que seja este o poder de enunciar verdades, ou suas outras variantes).

      Em segundo lugar, o feminismo não produz falta de socialidade... Pelo que compreendo bem, se eu não estiver enganado (e assim não incorrerei no erro de lhe perguntar "em que mundo você vive?") o feminismo têm promovido exatamente o oposto, uma rede de socialidades exclusivamente direcionada às mulheres e ao debate das questões que lhe são concernentes e que nem sempre envolvem nossa máxima opulência opinativa enquanto "homens"... ou seja, espaços em que elas trocam informações sobre as técnicas sistemas de exploração e dominação (nos mais diversos níveis) que nós utilizamos para subjugá-las e que estão implícitas em nossos sistemas de parentesco. Neste sentido, elas não precisam necessariamente concordar entre si. Ao invés disso, procuram manter este espaço para elas e entre elas... como é difícil descobrir que nem sempre nossas opiniões descabidas sobre o mundo correspondem a experiência subjetiva de outrem, não?

      Em terceiro lugar, e mais importante ainda, a suposta repetitividade da qual você tanto fala, ao que me parece, indica que essas pessoas não estão sendo "ouvidas", eis a razão de tanta insistência, até que alguém "nos ouça". Não imagino que gays e lésbicas militantes vivam suas relações amorosas cotidianas debatendo opressões, ou que isto seja algo que façam compulsivamente, eles até são, ou podem ser felizes de vez em quando, por serem quem são a despeito do raciocínio absurdo de alguns especialistas... quero dizer, sua narrativa não surpreende, afinal até mesmo a Associação Americana de Psicologia demorou quase um século para despatologizar o comportamento (a vida literalmente) destas pessoas, mas... de um pronunciamento oficial para uma mudança simbólica-pragmática cotidiana efetiva que seja capaz de acabar com a persistente tortura promovida pela cultura em que vivemos há ainda um longo percurso.

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    3. Enfim, o comentário do anônimo acima caiu como uma luva, pelo visto é uma ironia, uma forma de dizer que você está "por fora"...

      Eu poderia ser cruel e apostar imaginativamente que você é o tipo de cara que quando encontra um homossexual fica com temores inconscientes de que ele investirá sexualmente em ti, mas como trata-se de uma conjectura, serei legal e sugerirei que nenhum destes movimentos que você tanto afirma produzirem o seu contrário, possuem um destino político fixo previamente determinado, encontrando-se igualmente sujeitos a uma critica filosófica séria (considerados aqueles que podemos, de fato, ouvir seriamente, o que já é um problema em si mesmo), pela forma como produzem, reproduzem e contra-produzem (ou destroem) determinados modos de relacionalidade.

      Enfim, compreender os problemas em questão não equivale a dar oferecer respostas prontas as quais estamos cansados de ouvir, ao invés disso, consiste em, após buscar um conhecimento efetivo sobre a questão, formular as perguntas corretas àquilo que está em pauta nos debates políticos centrados na questão de gênero, mas é claro, como sou pessimista, acredito que poucos serão capazes de, ou quererão, fazê-lo. Assim como está, está bom... pois, ao que parece, é conveniente, como diria Camus, somos seres absurdos.

      Ferdinando

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