domingo, 21 de fevereiro de 2016

Uma confortável cama para sua alma




Veja o bonito entendimento de Santo Agostinho sobre a amizade:
Em seus primeiros anos de mocidade, Agostinho lecionava em Tagaste. Este município é o deu seu nascimento, em 354 d.C., e localiza-se onde hoje é a Argélia, na África do Norte. Agostinho cresceu junto de um rapaz, com quem fez escola e brincou. Na mocidade, ambos continuaram dividindo os estudos e as alegrias da mocidade.

A mãe de Agostinho era cristã fervorosa. Deixavam-lhe triste as crenças supersticiosas do filho. Agostinho não deixou de apresenta-las ao amigo. Um dia, este rapaz caiu em forte febre. Os cuidadores dele, vendo sua crescente piora, batizaram-no. Agostinho ficou contrariado com isso, mas acreditava que sua influencia sobre o amigo seria maior do que aquela cerimônia realizada sobre o corpo inconsciente dele.

O rapaz, então, recuperou-se. Agostinho ansiava por lhe falar, e tão logo pôde ser ouvido, ridicularizou o batismo. Eis que, então, o amigo olha para ele como a um inimigo, dizendo que se ele quisesse manter a amizade, que jamais falasse aquelas coisas. Perturbado, mas contendo a emoção, afastou-se Agostinho. Pouco tempo depois, o rapaz recai na febre violenta, e morre. Ele e Agostinho jamais voltaram a se conversar.

O coração de Agostinho encheu-se de trevas. Perdeu o chão. A pátria e até a casa paterna não eram mais seus. Os lugares em que antes encontrava o amigo agora estavam mortos, pois o amado nunca mais estaria neles. A alma de Agostinho perdeu totalmente o pouso. O que fazer com ela? E qual era razão daquela morte? Impossível saber, responderá o Santo, anos depois. Há um fosso entre os julgamentos de Deus e aos homens.

À época, contudo, “o homem tão querido que eu perdera era mais verdadeiro e melhor que o fantasma em que lhe mandava ter esperança.” (p.89). A um desgraçado, só o choro consolava. O doce choro era o único sucessor de um amigo.

O tempo passou, e o sofrimento amainou. Agostinho entra nas confissões a Deus. Desgraçado ele era quando jovem, por sua alma estar presa ao amor às coisas mortais! Com a morte do amigo, a amargura tomou o seu lugar nas afeições de Agostinho. Ele não morreria pelo amigo, pois passara a ter medo da morte. Tinha ódio da morte, que tranquilamente arrebatou seu amigo e o fazia com todos.

“Admirava-me de viverem os outros mortais, quando tinha morrido aquele que eu amava, como se ele não houvesse de morrer! E, sendo eu outro ele, mais me admirava de ainda morrer, estando ele morto” (91). A vida era totalmente insípida para quem vivia pela metade. Eles eram uma alma em dois corpos. Por isso, a fuga de Agostinho à morte era para que não se completasse a morte do amigo.

Sua alma sangrante só encontrava sossego nas lamentações. Ele mesmo não era um bom lugar para a alma dele. Mas como sair de si mesmo? Agostinho saiu da cidade em que seus olhos acostumaram-se com o amigo. Deixou Tagaste, foi para Cartago.

A passagem do tempo fê-lo ter esperança. Retomou antigos prazeres. Arranjou novas companhias, deixou-se seduzir por leituras conjuntas, por trocas de amabilidades e honrarias, etc. Novos amigos a quem pagava com amor o amor que deles recebia. A consciência humana se obriga a amar quem a ama.

A morte de um amigo transforma doçura em angústia. A única forma de não se perder um amigo, Santo Agostinho percebeu, era amá-lo naquele a quem nunca se perde, Deus. Para ele, a verdadeira amizade é aquela em que o Eterno enlaça os que se lhe unem.



Livro utilizado

Santo Agostinho. Confissões. Editora Vozes.

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