sábado, 14 de maio de 2016

O ser que pergunta e fala


Você está conversando com alguém. Alguma coisa que esta pessoa lhe diz mostra uma ponta de como ela interpreta você. Você, então, pergunta: "por que me disse isso?" É uma pergunta para ela falar o que está pensando (apesar que, quando se fala, o pensamento ocorra junto).

Você também pensa em dizer algo que confirme ou desconfirme o que ela parece pensar a seu respeito. Uma confirmação, numa tal situação, seria para afirmar-se, senão parecido com essa outra pessoa, parecido com o que ela pensou de você. Em ambas as intenções, a busca é por alguma semelhança. Uma desconfirmação teria ou o propósito de apenas negar, querendo permanecer sendo o "não sou isso", ou de abrir caminho para que tanto você quanto ela digam outra coisa de você.

Mas você não muda a primeira pergunta que fez, "por que você me disse isso?". Essa é uma pergunta que deixa a conversa interessante. É quando se procura dar um tempo nas expectativas trocadas, e perguntar pelo que se está vendo e pensando.

Perguntar pelo que o outro está pensando, a respeito de qualquer coisa, ainda mais a respeito de você, que está diante dele, é pedir uma resposta difícil. Existe o temor de magoar um interlocutor. Na verdade um temor egoísta, pois o temor é por estar sozinho e se magoar. O outro tem impressões a seu respeito, e pensa coisas que pode levá-lo a conclusões. E esse outro, sem coragem de estar sozinho, apenas solta um rabicho do que pensou de você.

Sócrates era racionalista, foi o que aprendemos. Ele queria saber se sabíamos o que dizíamos. Queria saber sobre o que restaria do que sabíamos, ao sermos perguntados por ele. Mas, estranhamente, antes de ultrapassar a porta de entrada da casa de Agatão, onde ocorreria O Banquete, Sócrates estacou. Ficou um tempo, parado, sem nem responder. Logo saiu desse estado, e entrou na festa. Bebeu, escutou discursos e discursou, como sempre.

Em diversos momentos da obra de Platão fala-se do daimon de Sócrates. Sócrates ouvia vozes! Seriam essas vozes uma realidade divina ou uma astúcia, uma piscadela do grande racionalista? Estas questões são colocadas por Cioran, no texto "A Habilidade de Sócrates" (busque este texto aqui na biblioteca do Ghiraldelli: http://ghiraldelli.pro.br/biblioteca/). Sócrates desperta a nossa curiosidade. Ele não é bem racionalista, nem irracionalista. O que ele é? À filosofia ele deu o que pensar a respeito de ambas as coisas.

Seguindo o entendimento do Cioran, Sócrates quis escapar dos que o rodeavam. Aquela gente que insiste em falar das coisas sobre as quais realmente não sabem. Gente que se desconhece. Sócrates estava em outra, pois sabia o que não sabia. Ou então aquela gente querendo ensinamentos, acreditando que Sócrates tinha algum tipo de saber "a mais". Bem, o que ele dizia vinha das musas. E quem falava com ele era o daimon. O saber sobre as coisas não é para os mortais.

Sócrates era um solitário cercado de mortais. Ou um acompanhado daqueles seres divinos. Da mesma forma que não se sabe a natureza do seu daimon, não se tem acesso à natureza da sua razão, sendo ela inspirada pelo divino.

Estudo e escrevo sobre a Bíblia e Santo Agostinho. Sobre histórias e teorias a respeito da relação entre homem e Deus, entre o mortal e o imortal, o corruptível e o incorruptível, o particular e o absoluto, etc. "O Thiago acredita em Deus!" "Ué, mas ele parecia não acreditar, antes." A última coisa em que penso é nessas questões. Através dessas questões, busca-se testar, por identificação aqueles com quem se pode "ser amigo".

Sou amigo, viro amigo de quem se senta à minha frente e me fala sobre qualquer coisa, e responde às minhas perguntas. Ou que me pergunta. Amigo é aquele que puxa o pensamento do outro, produzindo-o boca afora, pela fala. Não importando se somos filósofos, evangélicos, negros, espíritos. A conversa filosófica é maior do que o indivíduo. Ela deixa sozinhos os eus que querem identificar-se com outros eus, pois ela estranha os elementos usados para produzir a identificação. E também estranha as diferenças.

Diante de um afoito por ser um amigo ou um inimigo, um igual ou um diferente, o filósofo refugia-se no pensamento. Nessas horas, sua melhor companhia é ele mesmo. Ele fica estranho, indiscernível ou sem paciência. Um mau amigo. Pior de se entender do que um inimigo. Para quem o escuta, ou tem a generosidade de dizer a ele o que pensa (inclusive de si mesmo ou do filósofo), o filósofo é alguém que existe desta forma, mesmo. Alguém que fala algo, que escuta algo. Que com você conversa sem a prisão de, a priori, ser alguma coisa.


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