sexta-feira, 20 de maio de 2016

O apaixonado está por dentro. O militante está por fora.


Rubem Fonseca tem um conto em que um casal passa por uma noite de sexo maravilhoso e, pela manhã, enquanto eles relaxavam na cama, o homem fala em Nietzsche. Uma gota disso foi o suficiente para transbordar: a mulher se levanta, veste-se a jato e vai embora.

Segundo Platão, no Fedro, apaixonamo-nos por aquela pessoa que se assemelha ao deus nosso de devoção. Por exemplo, uma pessoa que adore Ares, o deus da guerra, amará alguém que na vida se mostre firme e decidido; um adorador de Afrodite amará alguém de rosto e corpo impecáveis. A pessoa que é alvo deste amor tem a característica pela qual está sendo amada. Contudo, o apaixonado exagera em sua percepção. Ele vê o seu amado como mais batalhador, mais bonito, mais justo ou mais inteligente do que realmente é.

A qualidade que um amante mais aprecia em seu amado é o que mais o fará se regozijar, quando na companhia dele. Observando como ele lida com o seu trabalho ou problemas por que passe, ou conversando ou fazendo sexo com ele, aquele traço fisionômico ou comportamental encherá os seus olhos.

Além de aumentar o que ama no amado, o apaixonado diminui o que odeia no amado, o que odeia em qualquer um. A desonestidade de um belo rapaz não será facilmente percebida por quem está caído por ele. Uma mulher demorará a se incomodar pela falta de gosto pela leitura, de um empresário altamente assertivo e que é um garanhão na cama.

O apaixonado goza a todo o momento em que está ao lado do seu amado. O gozo sexual é um dentre eles. O esfriamento da paixão ocorre quando vai se tornando maior o que se desgosta no amado. Isso é óbvio. Então digo mais sobre o óbvio, para que reparemos nele: a mulher levantou-se da cama do homem que "desandou a maionese", resolveu "pagar de intelectual" numa situação de deleite pós-explosão sexual. "Pagar de intelectual" não cabe quando se está exausto depois de uma batalha, e seu oponente foi nada menos do que um excepcional lutador. O pretenso intelectual estraga o momento. E é um pretenso intelectual, alquém que quer ser intelectual.

Um intelectual lê, conversa, pensa, principalmente junto da sua amada. Ambos curtem isso. Não é por moralismo que eu digo que esta não é a hora de eles começarem os toques que levam ao sexo: um momento de prazer a dois, em torno de determinado gosto em comum, espera-se que tenha mais importância, naquele momento, do que todos os outros gostos que um deles possa ter. Se estou conversando com minha mulher, e estamos nos amando mais em torno dessa atividade, e ela começa a arrumar a casa, inclusive me ordenando que pare de sujar a cozinha, considero-o frustrante. Da mesma forma que, quando estou escrevendo um texto, fico absorto e indisponível para fazer outras coisas.

Quando um casal apaixonado está em um dos seus momentos de curtir o que gostam de fazer juntos, o que aparecer de distinto desse interesse ou das características pessoais envolvidas nele gerará incômodo. Mostrará que o parceiro não está envolvido no momento, não está entregue à paixão.

Um homem que gosta de filosofia se apaixona por uma militante do movimento negro. Ela é lindíssima, e ele vê bem isso. Eles vão ao shopping, pois o que mais desejam é passar um tempo coladinhos um no outro, andando por aí. Eles olham-se nos olhos e olham os passantes, com cara de apaixonados. Em um dado momento, a moça reclama que nas vitrines das lojas não há nenhuma mulher negra nas fotos de exibição dos produtos. Ele fala o quanto ela é mais linda do que todas, e que deveria estar naquelas fotos. Ela continua falando do absurdo daquilo, de que é racismo.

Vem ao rapaz o pensamento de que ele gostaria de ler um texto sobre racismo, com ela, e discutir. Mas depois. Ele considera que os casos devem ser analisados com calma, e um momento oportuno. E sua amada está tratando com mãos brutas demais aquelas vitrines. Ela insiste que a hora de conversar é aquela, pois deve ser quando "se sente o racismo ocorrendo".

O militante é aquele que fala em Nietzsche na hora errada. É o que fala coisa intelectualizada no meio de um filme Corra que a Polícia Vem Aí. É o que sai do transe do amor, para reclamar do que se passa no caminho. É o que interrompe uma aula, onde se devia entrar no clima de um autor, para falar de problemas educacionais.

O militante é aquele que está fora de determinado clima, enxergando e dizendo o que não convém. E ele é pseudo militante, pois não se engaja no círculo de pessoas que estudam o que as incomoda, elaboram ideias e ações em torno do que possam fazer para resolver isso. Ou seja, enquanto o militante aproveita o momento de estudar (é estudante), o momento da escrita (é escritor) e o momento da manifestação (aí, sim, será manifestante. E, por querer que sua demanda seja resolvida, ele deve esperar que sua atuação como manifestante tenha um fim), o pseudo militante é um incessante e eterno queixoso. Ele é aquele que se põe fora dos círculos. Ele está longe de estar apaixonado, coitado.

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