terça-feira, 31 de maio de 2016

Herança e mérito


Um pai está para morrer. Não deixa mulher. Mas deixa um filho, um homem que não se esforça para nada. Este pai tem uma rica herança. Pensa em doá-la a terceiros, pois não pára de pensar em seu desagrado por deixá-la para o filho, que a torrará. Ao olhos dele, seu filho não fez nada de bom na vida. Portanto, ele não tem méritos, e não merece receber a herança.

Um outro pai está bem vivo. Tem mulher, dois filhos. Um deles mostra interesse pelos estudos de uma determinada área, área para a qual, inclusive, ele sempre demonstrou aptidão. O pai, que não tem lá dinheiro sobrando, decide bancar os estudos universitários do filho, incluindo computador e viagens para congressos.

Ao longo da sua vida, este filho esforçou-se em toda atividade que quis fazer. Aquele curso universitário seria o coroamento de uma trajetória de sucesso, ao mesmo tempo que seria o início desta mesma trajetória. De certa forma, o pai também é coroado, e tem mérito, pelas conquistas e desenvolvimento do filho. O pai está vivo, mas seu filho já é herdeiro dos ensinamentos que ele lhe transmitiu, e do dinheiro empregado na sua formação.

Na primeira situação, o pai olha para o filho e não gosta do que vê: é a imagem do fracasso dele próprio. Ele queria deixar-lhe de herança não facilidades, não mais recursos a serem gastos à toa, mas uma espécie de ausência, um buraco para, quem sabe, o filho cair e poder levantar. Nesta situação, há uma herança, mas não há mérito de pai ou de filho.

Na segunda situação, o pai se regozija ao ver o filho, vê o melhor de si. Ele tem certeza que ele próprio irá mais longe, ao ver os passos do filho. Pode morrer feliz, quando for a hora. É um grande pai, pois é pai de um grande homem.

A meritocracia é um ideal do liberalismo: você vale pelo seu desempenho. Seus elaboradores não são tontos, como supõe a crítica, geralmente feita pelos militantes de causas sociais, de que eles tratam igualmente os desiguais: em John Rawls, por exemplo, os desiguais devem ser tratados desigualmente, pelo Estado. Ou seja, deve haver políticas públicas e sociais para os grupos com menos chance para competir no mercado de trabalho, grupos com menos chances à boa formação e boas condições de vida.

Estas políticas compensatórias objetivariam fazer com que estes grupos que partem de um patamar inferior possam elevar-se, de modo a competir em posição equivalente aos de patamar médio e superior. Deste modo é que se fala em meritocracia, em valorização do indivíduo pelo seu desempenho, nas sociedades de democracia social.

Reparem que Rawls também não abre espaço às ideias de direita, libertárias, que visam reduzir a participação do Estado no trabalho e na economia. E, também ao contrário do que pensam os libertaristas americanos, e a direita brasileira, receber dons não significa, em teoria, não esforçar-se na vida.

No Antigo Testamento da Edição Pastoral, da Bíblia Sagrada, o livro de Josué é iniciado pela frase: "A terra é dom e conquista". No século XIII a.C., as tribos de Israel entraram na terra que Javé lhes prometeu no Egito. Os patriarcas de Israel sofriam com a escravidão, e foram incitados por Deus a libertarem-se, com a promessa de que receberiam uma terra onde mana leite e mel.

Moisés guiou o povo pelo deserto. Devido ao cansaço e à fome, algumas vezes Israel questionou se Javé estava mesmo com eles, e se tinha valido a pena deixar o Egito. Começaram a achar doce a comida de que se alimentavam à noite, no Egito, no descanso do trabalho forçado. Em um desses momentos de descrença, Javé diz que aqueles homens e mulheres, inclusive Moisés, que não transmitiu confiança ao povo, não veriam Canaã, a terra prometida. Os descendentes deles é que chegariam lá.

Após quarenta anos no deserto, o povo estava renovado. E agora havia Josué, no lugar de Moisés para sacerdote de Javé e guia de Israel. Javé ordena que Josué levante-se e atravesse o rio Jordão, com todo o povo, em direção a Canaã. O filósofo Peter Sloterdijk tem uma passagem em que diz que o homem é o animal que nasce duas vezes: a primeira é quando sai do útero da sua mãe, e a segunda é quando ele dá nascimento a si mesmo.

Em sua ancestralidade, o homem foi algo que rastejou, depois andou de quatro patas, próximo ao chão. Então ele tornou-se bípede, levantando-se. O ser que um dia tornou-se homem viveu em uma situação aquática, em que ele abria a boca e recebia o alimento. Evolutivamente, o homem um dia ergueu-se, virou bípede, e usou a mão para obter o alimento.

O homem é o ser capaz de agir por si mesmo, e o faz ao consultar sua bagagem psíquica, formada desde sua vida intra-uterina. Inicialmente, ele adquire informações sensoriais sobre o que é bom e o que é mau, e depois ele terá uma voz interna que o orientará. Esta voz será a do anjo da guarda, ou a de Deus.

Ele também formará uma voz dele mesmo, a partir dos elementos que ele considera como o "si mesmo". E essa voz do si mesmo que o homem vai auto-consultar, para então agir, ou se auto-desinibir, levantar-se.

Deus disse a Josué: "sou eu quem lhe estou ordenando para ser firme e corajoso". O livro não fala em auto-consulta de Josué. Ele age a partir de Deus, não apresentando uma deliberação, uma conversa interna como veremos com Jesus, tentado pelo demônio, no deserto.

Josué levantou-se, e Javé disse-lhe que o povo havia de por as plantas dos pés na terra que seria dele. Não rastejar, mas por-se de pé e plantar-se, adquirir raízes e crescer. Javé garantiu que não o abandonaria, ou ao povo, se eles se mantivessem firmes e corajosos. Josué fala ao povo, orientando-o quanto ao que fazer para conquistar a herança de Deus. O povo diz que será firme corajoso, se Josué também for firme e corajoso.

O povo acredita na promessa e levanta. Agirá bem, realizará o seu propósito, mas se Josué também agir bem, realizar o seu propósito. O desempenho de um, o mérito e a recompensa de um dependem dos do outro. Apesar de não verificarmos um levantar-se por si mesmo, em Josué, vemos na parceria dele com Deus, e na parceria dele com Israel, crendo em promessas e levantando-se, a formação de esferas e de subjetividades, como traçou Sloterdijk.

Cumprir a promessa que lhe foi feita, ou melhor, o propósito da própria vida, significa não desviar-se do caminho para a conquista da terra recebida. Recebida, mas ainda não herdada. Herança é algo que se deve realizar pelo homem que, ao receber um dom, emprega as possibilidades que tem, enquanto criatura humana. O ter sido feito "à imagem e semelhança de Deus" não é algo que se é de antemão, mas é um "tornar-se quem tu és" nietzscheano.

O homem deve tomar posse de quem ele é, endereçando as possibilidades recebidas para a consecução do plano de crescer e multiplicar-se. "Deus promete por dentro das aspirações do homem, e realiza seu dom por dentro das conquistas do homem". A promessa de Deus é como a promessa da mãe, que guia o ser que sai dela, teme o abismo, é pego em seu colo e com ela faz uma dupla inseparável, um mundo à parte. Ela anuncia uma saída do abismo, e uma condução segura e imune aos perigos externos. Mas ela também exige que dali nasça um sujeito, um ser que age por si mesmo.

As aspirações do homem são o que um dia prometeram para ele. Um dia ele as conquistará e voltará para casa, herói vencedor. E isso realiza o que de melhor uma mãe e um deus podem ser.

Um dom só deve ser dado a quem está à sua altura. Se ocorre de alguém que não consegue se levantar, receber bens, haverá a perda de tudo. A promessa contida nos dons não será cumprida. E eles não se tornarão realmente herança, benção. O indivíduo jogou cal nesta terra.

Quem se preocupa muito em pedir dons, geralmente não faz jus a eles.


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