quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Repressão sexual. Desoneração total.


Rorty, em um texto de velhice, disse que deveria ter se feito acompanhar por mais poesia, do que pôde fazer. Ele era filho de poeta, e isto lhe proporcionou não uma aproximação a este tipo de leitura, mas uma questão psicológica profunda, que o distanciou dela. Esta questão era do tipo que interessava Freud, investigativamente. Mas, além dos motivos para se esquivar da poesia, ou dos motivos que outra pessoa, ou o velho Rorty, poderiam ter, para curtir poesia, está o que faz com que alguém curta este tipo de arte, e o que é a sua experiência estética.

Freud via motivos lógicos naquilo que ele explicava. Mas sabia não haver quaisquer motivos lógicos na criação ou na fruição estética. A esquiva de Rorty quanto à poesia era marca de uma herança do seu pai. O entendimento desta marca é o entendimento desta herança. Já a fruição que Rorty, afinal, encontrou, demonstrava ter havido uma reconciliação com o pai.

Freud criou um aparelho psíquico no qual se faziam presentes o princípio de descarga de energia psíquica e os processos de retenção desta energia. Estes são os que constituem as memórias, predominantemente inconscientes, dos acontecimentos da vida do ser dotado deste aparelho psíquico. Estes acontecimentos são os lances de satisfação e de exigência de postergação da satisfação das necessidades sexuais, que determinam as formas de escoamento da energia psíquica. Dentre estes acontecimentos também estão as necessidades de escoamento da energia libidinal ligada à memória inconsciente de fatos incômodos ao eu. Esta porção de energia causa, no indivíduo, a formação de sintomas neuróticos.

Os pais de uma criança, com seu modo particular de conduzir a satisfação/insatisfação sexual dela, e de apresentar as referências culturais que fazem o eu da criança avaliar negativamente algumas de suas ideias, fazendo com que ela as recalque e, um dia, tenha o seu retorno como neurose, são os formadores do aparelho psíquico do seu descendente. A criança descende dos pais na formação e funcionamento do próprio aparelho psíquico. O aparelho psíquico é o resultado e a permanência de uma filiação familiar.

A teoria freudiana ofereceu ao senso comum a ideia de que o modo de ser, incluindo o modo de sofrer, de cada um, tem a ver com o que sua família lhe proporcionou, na infância. Em nome disso, buscamos biografias para explicar personalidades. E essa responsabilização das relações familiares no que apresentamos faz com que reforcemos a imagem da família como lugar de sofrimento e, portanto, de necessária intervenção profilática, para se alcançar a saúde (como Jacques Donzelot e Jurandir Freire Costa apontaram), e a felicidade.

Rorty explicou seu caso com o pai utilizando a teoria freudiana. Segundo o filósofo, a sua esquiva em relação à poesia devia-se à permanência de um mal-estar relacionado ao próprio pai. E a possibilidade de Rorty abraçar a poesia na velhice veio a partir de uma certa elaboração desse problema, de um certo fazer as pazes com o pai.

O filósofo Paulo Ghiraldelli Jr apresenta a noção de desoneração, do filósofo alemão Peter Sloterdijk. Ela diz respeito à modernidade enquanto liberação de cada um frente a uma linhagem iniciada em Adão. Trata-se de uma linhagem de pecado e culpa, que encontra-se na ancestralidade da civilização, do europeu. Pertencer à civilização era se inserir na linhagem do pecado. Jesus foi um marco da modernidade, ao decidir distanciar-se de todos e ir ao deserto, atendendo à voz em sua cabeça (seu daimon). E também por ter morrido pelo pecado de todos, cortando, enfim, nossa filiação à culpa.

Freud falou sobre o homem impedido de realizar suas necessidades sexuais. Seu homem era o reprimido, pelas exigências culturais rebatidas sobre sua família, e então rebatidas sobre seu psiquismo. Contudo, caso consigamos ver o homem além de Freud, ou seja, além de um herdeiro de dramas familiares, chegaremos ao homem moderno, ou seja, no desonerado. Antes de sermos neuróticos, atingidos pela repressão sexual, somos modernos, seres sem filiação à uma metafísica do pecado, com o espírito do fazer-se por si mesmo.

Este homem é um sujeito do acaso. Não se pode dirigir suas escolhas. Não se pode mapear as influências geográficas e históricas do que ele faz. Sua geografia é surreal, seu tempo é o do desatrelamento do passado. Isso quer dizer que ele se fez a partir do dinamismo intenso das relações que o fizeram, do quase insondável processo de autoconsulta e autodesinibição, e da carta branca para experimentar o novo.

O total fraqueamento das escolhas causa vertigem. Ghiraldelli Jr. explica que, de tão isentos de peso, buscamos peso: as igrejas evangélicas crescem entre os jovens que sentem necessidade que algo reste como pecado. A sexualidade é o campo de preocupação escolhido. Também foi a escolha da teoria familiarista freudiana. Rorty sentiu-se castrado pelo pai, quando teve suas poesias reprovadas por ele. A teoria freudiana, do homem comprometido com o passado familiar pode ser vista, então, como uma detecção do quanto o homem é capaz de amarrar uma âncora em seu pé.


P.s.: Este texto beneficiou-se da explicação que Paulo Ghiraldelli Jr, deu, no hangout do CEFA (Centro de Estudos em Filosofia Americana) do dia 03/01, para minha questão sobre o familiarismo freudiano e a desoneração em Sloterdijk.

Nenhum comentário:

Postar um comentário