domingo, 16 de outubro de 2016

O homem, um ser de família



Neste ano, 2016, foi lançada “Amoris Laetitia: Exortação Apostólica Pós-Sinodal”, escrita pelo Papa Francisco. Este é o resultado dos sínodos, reuniões de bispos, ocorridas nos dois últimos anos. O tema destes sínodos foi a família. No texto o Papa apresenta, como não poderia deixar de fazer, uma visão de homem, atrelada a uma visão de família.

A Igreja é como uma avó, que tem um olhar antigo, tradicionalista, mas ao mesmo tempo disposto a compreender as mudanças do seu tempo. Reposto por essa exortação está que o casamento trata-se da união de um homem e uma mulher, pois apenas eles dois, juntos, são capazes de fecundidade. Assim, estão excluídas uniões entre pessoas do mesmo sexo. No entanto, mesmo rígida, a avó continua sendo avó. Papa Francisco entende que a família que é possível de se encontrar no mundo não corresponde ao modelo da Igreja e do evangelho: casais divorciados, em que, frequentemente, uma criança passa a ser criada por apenas um dos pais; casais que coabitam sem terem contraído matrimônio; pais que fazem usos de substâncias tóxicas; casais que deixaram de frequentar a Igreja; etc. A Igreja deve acolhê-los todos, pois sua missão é não apenas doutrinar, mas também acolher e aliviar as dores. Sem falar que ela deseja o desenvolvimento de todos os homens, e não fará a exclusão de ninguém.

A que visão de homem se deve essa posição? O homem é uma criatura, que trabalha e coordena as coisas do mundo. Para que ele não sentisse sozinho, Deus lhe deu uma mulher, com quem ele se uniu. O matrimônio é assunção pública da união entre o homem e a mulher. Essa união é o compromisso de enfrentar o desafio de amar e ser amado pelo outro, cuidar e ser cuidado por ele, envelhecer junto dele (“gastar-se”, como está na exortação). Esse compromisso de fidelidade é a imagem da fidelidade de Deus para com o homem. Por isso, dificuldades de diálogo, dificuldades financeiras ou problemas advindos de hábitos pessoais recebem orientação.

O homem é um herói, ao manter seu compromisso, mas para isso, não conta com suas próprias forças. O Espírito Santo lhe dá uma força. Em suas Confissões, Santo Agostinho falou da dificuldade por que passou quando jovem: estando noivo, não conseguia deixar de desejar outras mulheres. Ele esforçava-se, sofria, mas não conseguia se conter. Depois veio a perceber que o homem que pretende lutar contra um vício do espírito e um mau-habito do corpo, contando apenas com as próprias forças, é incapaz de vencer. É preciso pedir a ajuda de Deus. Deus é, então, a fonte da força que permite ao homem manter-se no compromisso com Ele, consigo próprio, com seu cônjuge e a sociedade, a qual ele está construindo apresentando sua própria família.

O homem exerce sua vontade sobre si mesmo e o mundo. Contudo, não pode considerar-se autônomo e soberano sobre a criação. Regras de vida colocam-se para ele. Conforme o espírito do Antigo Testamento, regras de vida servem para evitar que se viva uma vida que leve à morte, como a escravização dos outros seres e o deixar-se escravizar pelos próprios impulsos. Ao homem é esperado o auto-governo, e também lhe é oferecida uma estrutura além dele. Um cônjuge não toca o âmago, a alma do outro. A relação de ambos é de ternura, olhar atento para as necessidades e anseios do outro. Mas cada um tem um espaço intocado, que é para o encontro com Deus.

Um pai, um filho, um marido, um irmão têm necessidades de coisas, e impacientam-se com os comportamentos e os “tempos” diferentes daqueles com quem eles convivem. Deus acolhe incondicional, irrestrita e gratuitamente. Filosoficamente, o que esta teologia está dizendo é que a cada homem é oferecida a ideia de que há algo maior do que ele próprio e do que qualquer outra coisa que este homem conheça, e que este algo é uma espécie de Outro que o observa, com ele se importa e dele cuida.

O homem foi gerado e, no casamento, gera uma nova vida. A família é aberta ao mundo, não fechada. Diferentemente do narcisista, que acredita bastar-se a si mesmo, o casamento e a fecundidade são a doação do dom da vida, que cada homem um dia recebeu. Não é estar guardando um sentimento, estar ressentido. O ressentimento isola o homem e o faz condenar aqueles com quem ele ele diverge, ao invés de permitir que ele aceite o direito deles de também viverem neste mundo. Pode-se estar ressentido com um cônjuge, e com ele não conseguir conversar. Pode-se ser o ressentido que na cabeça possui uma ideologia, por exemplo o cristianismo enquanto ideologia, e condenar quem é apontado como desviante do ideal. Como diz o Amoris Laetitia, o homem deve aceitar o homem, e querer o melhor para ele, assim como a Igreja deve fazer.

Esta ideia de melhor baseia-se na busca do homem em ser menos mortal e mais imortal. Por isso ele deve constituir família e gerar frutos. Que ele faça opções pelo permanente, e rejeite o transitório, deriva que ele deva unir-se a outra pessoa, com pretensões de que isso seja pela eternidade, e que o homem não se dê a práticas que tornem a sua vida algo corriqueiro e banal.

A relação entre o homem e o mundo deve espelhar à da Igreja com ele: deve-se exercitar a aceitação da vida, em suas diferenças e limitações. Esta exortação toma o homem como algo inspirado no divino. Considerar esta ideia está para além de preocupar-se com a existência deste divino. Em um contexto pós-nietzscheano, a vida é entendida não como busca por autoconservação, mas como vontade de potência e amor fati. No entanto, falar contra o desperdício da vida é falar contra a falsa liberdade do homem atado a um de seus impulsos: o impulso do descarte. O uso descompromissado e o descarte compulsivo de relações e pessoas não têm nada a ver com a vida pujante e afirmativa que Nietzsche defendia.

O Papa e Nietzsche querem tirar o homem da escravidão e do solipsismo desumanizadores.

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