quinta-feira, 22 de maio de 2014

O bom é dividir irmãmente?

Sempre escutei que o certo, entre amigos e colegas, é dividir as coisas "irmãmente". Participei da seguinte situação, numa turma de crianças de cinco anos: quatro delas brincavam com um jogo de marceneiro, com ferramentinhas, madeirinhas, etc. Cada uma fazia sua construção. Um menino disse aos outros que precisava de mais um parafuso. Uns não responderam, outros disseram não poderem dar qualquer peça com que brincavam. Contei os parafusos das quatro crianças: o solicitante tinha dois, uma menina tinha quatro, e os outros dois tinham três, cada um. Eu lhes disse que se a menina com quatro desse um para o solicitante, todos teriam a mesma quantidade, três. Ela, a princípio, relutou, mas acabou cedendo a peça. Chegamos a uma divisão justa. Mas alguma coisa me parecia errada: a menina havia pego a peça primeiro. Aplicar uma divisão em parcelas iguais não parecia tão justo, assim. E fazer isso foi uma fuga minha da situação. As crianças, numa escola, agarram o brinquedo que está na frente. Às vezes esse brinquedo está na mão de outra criança. Um brinquedo visto é algo que certamente está ali para as mãos delas. Se alguém larga um carrinho para amarrar o tênis, não pode imaginar que outra criança olhará o carrinho como estando lá para ela pegar. A outra criança pega o carrinho, e ocorre uma briga entre os que só vêem carrinho diante de si. A professora dá o direito para quem pegou primeiro. Começa a surgir aí a ideia de que a sorte distribui o poder de ter os bens numa escola, no mundo. A sorte é vivida como injusta por quem é desfavorecido por ela. Um toque humano equalizador é pedido. Mas é justo dar a mesma coisa, ou a mesma quantidade, para cada um? Aqui falarei de Rawls e Nozick, tendo por base o "Filosofia Política para Educadores", do meu amigo Paulo Ghiraldelli Jr.. Para Rawls, justiça era equidade (não igualdade!): todos os indivíduos deveriam ser dotados de liberdades básicas, ou seja, direito a bens econômicos e materiais, culturais e a auto-estima. Contudo, cada um possui seus interesses próprios, de modo que se todos devem ter oportunidades, seria forçar uma barra esperar que todos façam as mesmas coisas com elas. Ou que se desse oportunidades iguais para quem gosta de computador e para quem gosta de dança. Uma desigualdade, se produzida tendo esse chão comum de direitos, seria aceitável. Ou quase: para que seja aceita, no esquema rawlsiano, a desigualdade deve resultar no favorecimento aos desfavorecidos. Indivíduos ou grupos com menos fruição daqueles bens, devido a um ponto de partida desigual, devem receber mais oportunidades. Rawls queria mitigar a inveja social, que levaria a uma má vida em sociedade e ao sofrimento individual. Para Nozick, ao contrário, a comparação é inevitável, para o homem. Imagine que o igualitarismo comunista-trotskysta se realizasse: "O homem tornar-se-à incomensuravelmente mais forte, mais sábio e refinado; seu corpo tornar-se-à mais harmonizado, seus movimentos mais rítmicos, sua voz mais musical. As formas de vida serão dinamicamente dramáticas. O tipo humano médio emergente terá o peso de um Aristóteles, um Goethe ou um Marx. E acima dessas montanhas novos picos surgirão." (citação de Trotsky, em Ghiraldelli Jr.. Filosofia Política para Educadores. Ed. Manole. pag 23). Nesse belo mundo, com belos homens, haveria tanta comparação e inveja quanto ocorre no nosso mundo, em que uns vivem com mais, outros com menos. O homem sempre quer alargar os próprios domínios, crescendo para cima do terreno do vizinho. Ele não mira longe, pois quer ampliar o perímetro do próprio território. Ele esquece do que tem, para cobiçar o do outro, e o destruirá, caso não possa ter o que é dele. A inveja corrói o coração, e parece mesmo natural. Rawls quer que a controlemos. Mas faríamos isso promovendo liberdades básicas e o que Rawls entende por boas desigualdades, aquelas que, no caminhar das coisas, deixa os indivíduos com fruições equivalentes, embora com seus talentos diferenciais desenvolvidos cada um a seu modo. Eu não devo dar três parafusos para cada criança, pois uma delas, com dois, pode fazer algo melhor do que quem usou quatro ou três. Ou, então, o negócio dela pode não ser construção, mas contar histórias, e eu lhe passaria as que eu sei. Mas, olhando um pouco as crianças, a formação de seus territórios pode também ter inveja, quando uma delas sente-se injustiçada. Ela vai pisar nas peças do amigo. Queremos corrigir injustiças. Rawls quer controlar a inveja social. Mas a individual não precisa assustar tanto, e fazer-nos tomar uma falta de sorte num determinado aspecto como um infortúnio total. Se a criança chegou depois, no brinquedo de construção, ela pode olhar para os livros da estante, e contar e ouvir histórias. Ela pode preferir fazer isso, ou não, e insistir que quer a construção. Não poderá ter, e chorará. Nem sempre uma falta de sorte é contornável, a criança chegou depois e pode ficar sem ter o que quer. E seu sofrimento não precisa ser bíblico.

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