sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Movimento social e movimento do eu


Na escola vinha-se falando sobre racismo, “apropriação cultural”, etc. Hoje a turma assistiu um episódio do “Dear White People”. A protagonista, uma universitária negra, é locutora em um programa de rádio que leva o mesmo nome da série. Ela frequenta reuniões em que grupos negros, formados por pessoas de diferentes estilos, apresentam suas demandas particulares. Entre nós, na sala, a professora comentou a heterogeneidade do movimento negro.

Problemas concretos como, por exemplo, a exclusão de negros em diversos espaços, podem ser apresentados junto a reinvindicações por melhorias nas leis, na cultura ou nas instituições. Qualquer um que seja sensível o bastante para com aquela questão do outro, e que até perceba o quanto a resolução dela melhoraria sua própria vida, faria aquelas reinvindicações. Freqüentemente, contudo, esses problemas são acoplados a identidades (“eu sou assim, e preciso disso”). Faz-se uma associação, aparentemente necessária, entre identidade e necessidade, de modo que, para se ser algo, é preciso necessitar de alguma coisa correspondente. No horizonte, então, o que se vê não é mais a falta de necessidade, através da sua resolução. Além disso, a imbrincação entre identidade e necessidade, cristalizadora de ambas, exclui outros indivíduos da participação nas reinvindicações.

A minoria torna-se uma minoria-demanda. A demanda marca a identidade e, junto com outras características, forma uma imagem que se torna autonoma e também permanente. Não é raro encontrar identidades-minoria-demanda que queiram ser completamente autonomas e permanentes.

Entender que possa haver uma permanência como que substancial para o que se é, é um pensamento fundacionista*. Filosoficamente, o fundacionismo é a busca por um fundamento para se falar em realidade ou em sujeito. O platonismo é o principal fundacionismo que conhecemos. Nele, a essência de tudo o que existe está situada em um lugar à parte deste mundo.

Nietzsche foi um anti-fundacionista, ao colocar que não há um absoluto, uma referência situada fora deste mundo para se olhar este mundo daqui. Tudo o que temos são as coisas daqui e suas diferenças. A expectativa de que “meu eu verdadeiro” possa ser retratado em uma identidade, e representado por um movimento social, é um fundacionismo, leva-me à impressão de que a identidade e os discursos são autônomos e permanentementes. E desvia a atenção das demandas sentidas concretamente.

Naquele episódio da série, a protagonista arrumou um homem branco. Ela gostava dele. Ao levá-lo para uma reunião do seu grupo, todos sentiram-se desconfortáveis. Questionaram como uma líder de movimento negro poderia namorar um branco! No final do episódio, ela estava na locução do seu programa. Durante o dia ela esteve com pessoas, passou por situações, ouviu opiniões, mas agora ela falava objetivamente sobre suas queixas. Uma delas era de que os brancos da universidade não deveriam maquiarem-se de negros em suas festas. Isso a ofendia e, então, deveria mesmo ser posto na mesa.

O pragmatismo, uma filosofia antifundacionista propõe que as pessoas que divergem a respeito de alguma coisa não disputem sentidos sobre o que as coisas são (“quem é negro?”, “Quem não é negro?”, “Quem pode falar sobre as questões do negro?”), mas apresentem seus interesses. Um indivíduo, então, apresenta a si mesmo. Ele não espera ser representado por alguém. A ideia de representação requisita a de fundamento pois, se há uma definição absoluta de alguém, essa definição pode ser representada por outra pessoa. A protagonista da série, vendo a confusão de discursos dentre os seus colegas, apresentou-se a si mesma. Ela quer envolver-se amorosamente com quem ela escolher, e não com quem o movimento negro escolhe para ela.

O jovem apresenta-se, mas também busca representantes. Ele transborda, dá de si. Também se sente carente, precisando que alguém o represente. Apresentar-se, colocar as cartas na mesa, requer que a pessoa se veja como transbordante, tendo muitos recursos, muito de alguma coisa para dar. Na psicologia do grego antigo, o thymos é o órgão ligado ao reconhecimento e identidade. Aquiles era o melhor guerreiro dentre os gregos, decisor de batalhas. Agamenon tomou uma das mulheres do herói. Então Aquiles se viu ferido em seu orgulho, diminuído em seu valor, contrariado na sua identidade. Recolheu-se em sua tenda, não mais seria aquilo que sempre havia sido para os gregos.

Para nós que vivemos o império da miserabilidade, identidade é “eu sou assim e tenho que ser aprovado pelo outro. Ou, se o outro é meu inimigo, tenho que ser odiado por ele”. Na vida eu sou livre para fazer muitas coisas, mas não sou livre para umas tantas, as quais considero que tenho direito. Tenho questões pontuais, e que não necessariamente precisam me marcar com uma identidade-necessidade. Se isto ocorre, ao invés de um indivíduo ser livre, e ao mesmo tempo lutador orgulhoso de suas vitórias, ele, preso a uma identidade-necessidade, toma o direito ou como um agraciamento do outro, ou algo que não vale, diante da enorme injustiça do mundo.

O outro pode ser o homem que passa ao meu lado na rua, minha colega de sala, o outro profissional no meu local de trabalho, etc. Não é o outro no sentido do negativo do eu, do desafio, do ponto a partir do qual eu reflito sobre mim e me modifico. O outro, como negativo, está distante. O movimento-necessidade é uma reunião de outros iguais ao eu.

Voltando à sala, a professora explicou que as relações raciais no Brasil baseiam-se na cor da pele e na subalternização daquele com quem sempre se conviveu. Um indivíduo se vê próximo da sua empregada doméstica a partir de uma perspectiva qualitativa (ambos são humanos). E se vê como diferente dela na perspectiva da quantidade de melanina da pele. A pertença de ambos a uma espécie, e também a uma mesma casa, faz com que a relação que exista entre eles se dê em torno de um mesmo eu. Mas, como o eu é o dono da casa, a empregada é um sub eu ou um eu dominado.

As relações raciais nos Estados Unidos, também explicadas pela professora, baseiam-se na origem. O negro é afro-americano, descendente de povos africanos. Então ele é de uma ontologia diferente, um outro em relação ao branco. O outro, em relação ao meu eu, é tomado como o infernal. Mas, justamente por ser verdadeiramente o outro, ele me dá a chance para eu me reformular. Apesar da segregação racial ocorrida nos EUA, e não no Brasil, o negro é um desafio para o branco americano, enquanto que, no Brasil, o “tudo se resolve em casa” escamoteia os conflitos.

Se sou um eu livre do outro, e se esse eu é destituído de recursos, ou é ameaçado dessa destituição, o eu irá se agarrar ao que tem e proibir ao outro (próximo) chegar perto. Ele não pode militar junto comigo, ou me passará a perna! A conquista dele é necessariamente a minha perda. Agora, se o outro é aquilo que confronta o eu, que o move, a ausencia de direitos do negro pode ser uma afronta à liberdade também do branco, pois ele não pode viver sem o negativo que o faz mover-se. Sou confrontado pelo outro, não controlo a vontade dele, e tenho que, com ele, dividir os recursos e a vez de me apresentar. Eu me aprsento, e também ele. Como não considerar rico este mundo?



* A idéia de fundacionismo e antifundacionismo, em filosofia, e também a ideia que virá adiante, no texto, sobre o outro como igual ou como o negativo do eu, vieram dos cursos do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr.

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