sexta-feira, 22 de setembro de 2017

A cidade sem separações


Paterson (dir. Jim Jarmusch, 2016) é um homem jovem, motorista do ônibus 23 da cidade de Paterson (!). Casado (porque para casar basta morar junto, ser “casado” no sentido de “combinado” com alguém) com uma mulher indiana. Eles têm um bulldog inglês que vive na poltrona e participa de tudo com olhares e vocalizações. O cachorro tem um rosto. Paterson tem um rosto, nariz grande. O filme começa em uma segunda-feira e termina na segunda-feira seguinte, e corre dia a dia.

Paterson sempre acorda com o dia claro, e ele mesmo voltado para a mulher. Abre os olhos de repente e a vê. Então vira o rosto e o braço, alcança o relógio para conferir a hora, e é sempre hora de levantar. Volta-se à mulher e a beija no braço, a cobre. Logo mais você pensará no porquê de ele ainda estar com ela: ele trabalha, tem dias repetitivos, volta para casa e a mulher sempre vem com novas ideias de trabalho para ela mesma, mostra pinturas de gosto duvidoso, parece uma jovem com excesso de tempo livre. Ela manda-o passear com o cachorro. Paterson conversa mais com o balconista do bar. Ele ri.

Acordar com a mulher é o lar que ele tem. Seus braços são longos porque precisam alcançá-la, cabelos espalhados, pernas compridas. Seu nariz é comprido também por isso. Os tamanhos se produzem mutuamente. No ônibus, antes de partir, ele escreve poesias no caderno sem pautas. Ele ouve a própria voz. A escrita ocorre no caderno e na tela, com letras diferentes. Ele escreve para que ele mesmo saiba.

Os caminhos da rua são de tijolos expostos, letras nas paredes. São labirintos embaixo de um grande prédio. As palavras do poema fazem as imagens andarem por outros lugares. O indiano bate à porta do ônibus, cara de irritado com Paterson: “Posso falar?” “Pode.” É a sogra, o gato diabético, os problemas. Desiste de reclamar. Antes de escutar, Paterson fecha o caderno de escutar-se. Dá a partida, as horas passam rápido mas o dia é longo.

Alguns gêmeos ou pessoas parecidíssimas entre si conversam no ônibus. Floyd, gêmeo siamês de Lloyd, do conto de Nabokov, é completo: ele capturou o próprio anjo e o amarrou em sua lateral. Ele se entende com o seu duplo sem com ele precisar se comunicar. Mas, se formos sutis, perceberemos que nosso anjo já está conosco, não há de ser buscado, sequer amarrado. O triunfo do gêmeos completos em seu mundo de conversa circular é apenas aparente. É uma brutalidade com o anjo (este conto é apresentado e analisado por Paulo Ghiraldelli Jr, no livro “Para ler Peter Sloterdijk”).

Aquelas vozes, que não são para Paterson, entram no ouvido dele. Acabando o expediente, ele se senta diante de uma cachoeira. O som de água, cheiro de água também faz seu nariz crescer. Esses são outros polos do mundo dele, que se apresentam para que o corpo de Paterson também se apresente.

Ele chega em casa e a mulher pintou as cortinas, pintou a própria roupa e cupcakes. De preto e branco, ela e ele. Ele elogia as novidades ruins. Ela insiste na ideia de ele xerocar os poemas. O caderno é o duplo dele. Ele não quer ser trigêmeo. O outro irmão pode se perder. E quem há de se interessar?

Sai com o cachorro, que move-se rápido mas espera parado do lado de fora. No bar o balconista joga consigo mesmo. Aconselha aqueles que estão em dificuldades com seus duplos. Sempre se abanca a mesma mulher, queixosa de um cara que não aceita o pé na bunda. O barman atou-os para sempre, no “Romeu e Julieta”, um casal que não pode viver junto. Então o Romeu pegou uma arma para matar Julieta. Apontou para ela, apontou para ele mesmo. Era de brinquedo. Duplos não são necessariamente físicos. Muitas vezes são espectros que giram em volta de nós. Fisicamente, de fato, o filme não tornou a mostrar Romeu junto de Julieta.

Um dia o cachorro estraçalhou o caderno de Paterson, aquelas palavras nunca lidas, apesar de a mulher ter pedido muito por isto. O eu é pré-formado por borbulhas sonoras que o antecipam, contam o que será a vida dele. Sereias atraem o homem por uma música que já há dentro dele. Essa atração é para conferir identidade e também morte. Leitores, seguidores, prisão. Separaçào daquela vida. O cão livrou Paterson desse risco. Palavras valem ditas ou escritas (no ato de escrever). Ele as escreveu pensando na hora. O duplo não pode ter um corpo. Não precisa ter.

Diante da cachoeira um japonês foi uma sereia não mortífera, para Paterson: lembrou-o dos poetas daquela cidade, e deu-lhe um caderno, dizendo que a folha branca é cheia de possibilidades.

Na lateral do ônibus 23 há o anúncio, “Divorce? Call xxxxxxxx”. Paterson não se separa. Ninguém se separa, na cidade de Paterson. O ser é “ser-em, então, deveria ser concebido como uma companhia de alguma coisa com alguma coisa em alguma coisa.” (Ghiraldelli Jr, “Para ler Peter Sloterdijk”, p. 110)

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