quarta-feira, 8 de março de 2017

O trabalho dos sonhos


Saiu em uma reportagem que o ator Mario Gomes vende sanduíche na praia (http://m.extra.globo.com/famosos/aos-64-anos-mario-gomes-vende-hamburguer-na-praia-fazendo-uma-experiencia-21022042.html). Segundo alguns comentários no face, não há problema nenhum nisso, pois é uma "ocupação honesta". Na reportagem, o ator afirma estar dando os primeiros passos para um food truck. Olhando diretamente para o caso, temos um ator vendendo sanduíche na praia. Um ator deveria atuar, não fazer outra coisa.

Existe o trabalho de ator, com remuneração. A partir disso, o ator paga seu sustento e o de sua família. Um ator vendendo sanduíche na praia é algo errado, no sentido de "fora do lugar". Mas no imaginário comum, o trabalho do ator é um dos menos associados a remuneração e sustento: é visto como algo meio mágico, cuja capacidade de se realizar vem por mágica ("ele tem um dom") e o seu resultado produz efetiva mágica na terra ("ele nos encanta, sua atuação é sublime"). Alimentar-se e pagar a conta de luz, entre outras coisas, não é visto como estando associado ao trabalho do ator. Por isso, o que nos causa embaraço não é Mario Gomes vendendo sanduíches na praia, ou fazendo qualquer outra coisa para se sustentar, mas a mancha na aura de ator.

Talvez Mario Gomes esteja vendendo sanduíche na praia porque neste momento o que ele recebe como ator (atualmente ele participa de uma série) não faz frente aos seus gastos. Vender sanduíche na praia, então, viria a cumprir essa função. Lógico que "é honesto", não apenas no sentido de que não é o roubo de ninguém, mas no de que satisfaz necessidades objetivas. Na expressão "trabalho honesto" também há esse sentido de "trabalho que satisfaz demandas objetivas". Mas como podemos encarar um ator com necessidades objetivas? Nunca cobramos do Tony Ramos que ele coma um bife da Friboi.

A existência de reportagem e dos comentários a ela mostram uma razão não enunciada: o ator é para estar num palco e ser admirado, e o homem que é o ator não deveria fazer um trabalho para se sustentar. De que forma olhamos para um gari ou para um frentista? Como pessoas que ganham seu pão. Excetuando os momentos em que negamos a valorização do espetáculo, e reagimos a ela, querendo valorizar o "ganha pão" (quando dizemos "o gari tem uma profissão tão nobre quanto à do médico"), valorizamos trabalhos ao quais atribuímos certa aura.

A desvalorização do professor correu no passo das suas greves (pensamos que o professor é um "morto de fome"). Não damos aos médicos, aos atores, aos engenheiros ou aos juízes o mesmo direito a fazer greves, a ter necessidades objetivas. Essas profissões possuem uma essência transcedente, são o que a sociedade quer comentar, são ideais de profissões.

O outodoor de uma universidade pergunta: "Sucesso financeiro ou sucesso profissional?". Uma falsa pergunta, não porque a profissão deva acompanhar o dinheiro, ou vice-versa, mas porque a palavra "sucesso" refere-se, de uma tacada só, a ser incrível, um especialista, um mago, e também a nunca perguntar o preço de nada, nem olhar para o interior da própria carteira.

A profisão que almejamos não pode parecer em nada com algo que dê trabalho, também não deve referir-se a nenhum custo ou necessidade concreta de quem trabalha. Mostrou-se do Mario Gomes um lance de bastidor que ninguém queria ver.

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