sábado, 4 de março de 2017

Como a experiências pessoais podem dar em um bom discurso?


A imagem moderna da psicologia do homem, ou seja, do modo como ele se comporta, é a de divisão entre razão e emoção. No Iluminismo, a razão foi entendida como a faculdade de bem discernir sobre informações e do bem decidir como se agir. Cultural e cientificamente, sobre a razão assentou-se a saúde mental do indivíduo, a possibilidade de produção de um “conhecimento verdadeiro” e a legitimidade política. Os filósofos medievais e cristãos já haviam dito que as paixões da carne e do corpo exerciam influência negativa sobre a razão, atributo da alma. Assim formam-se as imagens atuais de razão e emoção, e a avaliação de que ao lado da primeira estão a saúde, o conhecimento, a legitimidade política, e ao lado da segunda estão a doença, a ignorância e a confusão, e a deslegitimidade em se falar pública e politicamente.

Além disso tudo, temos uma ideia oposta: a de que as emoções é que mostram a verdade e a saúde de quem as têm. Rousseau, no século XVIII, entendeu que a “sinceridade ou a pureza de coração” eram a matriz de uma verdade que se perde na cultura. O homem é naturalmente bom e, caso uma criança tenha sido preservada, por bastante tempo, da invasão da cultura sobre si mesma, será um adulto com capacidade de ser sincero. Notamos aí que a verdade é entendida como uma qualidade pessoal, a sinceridade, e não de enunciados publicamente avaliados. Se iluministamente, a verdade está na racionalidade, que pode ir a público, e a emoção é irracional, sendo privada, literária e psicanalíticamente há uma “outra razão” nas emoções de um indivíduo, enquanto que a sociedade, sendo baseada na falsidade, não o acolhe.

Portanto, ou se valoriza o que pode ser comunicado e eficiente em sociedade, e é consciente para o indivíduo, ou se valorizam as alegrias, as tristezas, a instrospecção, o inconsciente. Estas distintas valorizações parecem não se conciliar, no nosso modo de ver a psicologia do homem.

Faço, pois, uma sugestão: e se nossas razões conscientes e públicas forem formações paralelas e em comunicação com nossas emoções privadas e profundas? Ao propor isto, deixo de lado a ideia iluminista de que as emoções são fonte de erro ou falsidade, e também a ideia que reage a esta, de que as emoções são um vasto oceano, quase totalmente inconsciente, onde flutua uma pequena ilha, ignorante de si mesma, chamada razão. Recorro à ideia de coisas que correm em paralelo, para falar, por exemplo, de que uma experiência muito ruim, geradora de intensas emoções negativas, vivida por alguém, é por este alguém, no melhor dos casos, empregada como motor e matéria-prima de um discurso racional, que pode ser apresentado para si mesmo, nos próprios pensamentos, e para os outros.

Experiências muito ruins podem tornar-se dominadoras, sobre quem as experimenta. A capacidade de torná-las racionalmente entendidas e comunicáveis é a chave para escapar deste domínio. Pensar sobre um problema pessoal, e falar sobre ele e o que se pensou dele ajudam a resolvê-lo. E esta explicação uma pessoa oferece a outra, que também esteja passando por um evento difícil. Com um raciocínio, a pessoa entende e apazigua as próprias emoções, confere-lhes como que uma gramática. Essa capacidade de racionalização se desenvolve, e se alimenta de técnicas, através do aprendizado com outras pessoas, com filmes, músicas, livros, etc. Um raciocínio também tem o poder de discernir entre ideias razoáveis e não razoáveis, incorporando a si as razoáveis e instaurando um auto-convecimento. Esse convencimento é, sem dúvida, também feito com os outros.

Minha intenção nao é defender o primado da razão. Emoções ruins, geradoras de depressão, e emoções alegres, geradoras de euforia (em um sentido não psicopatológico), são organizadas não por uma ação da razão sobre elas, mas pelo movimento do pensamento sobre suas ambivalências emocionais. Este movimento é observador e organizador desses processos, e cria razões e emoções “trabalhadas”, organizadas.

Uma pessoa que sofra uma grande violência de uma outra experimenta uma gama de emoções ruins. Dependendo do seu repertório mental, toma esta experiencia a partir de uma perspectiva ou de mais de uma perspectiva. A pobreza mental leva a que se veja o acontecimento de forma unidimensional: “sofri x, sou vítima de um y. X é a pior coisa possível, y é o pior possível. Y deve sofrer o pior castigo possível”. Tal associação de ideias com conteúdo drástico faz com que a emoção ruim inicial seja reafirmada pelo próprio indivíduo. E essa refirmação da emoção a absolutiza. Absolutizada, tiranizando aquele que a experimenta, a emoção solidifica aquela pobre associação de ideias, e a catapulta a discurso público. A pessoa amargurada passa a vida empurrando aos outros uma visão de mundo amargurada. Ela não varia o discurso, porque não varia as ideias, porque não varia as emoções.

O indivíduo que lê gêneros textuais diferentes, que conversa e pensa em contextos também diferentes, que sabe que para cada coisa que ele sabe há um grande não saber é, portanto, um grande “pode ser” ou um “porque não?”, possui um repertório para não só transformar a própria dor em saber, como para fazer com que esse saber reconheça as nuances de emoções dele próprio, e mantenha a tarefa de “um algo a mais a ser conhecido”.

Em todo bom discurso há uma forte emoção. E quanto mais refletida é essa emoção, discernida em meio a uma ambivalência de emoções, mais ela é reconhecidamente presente em sua razão e discursos. Santo Agostinho entendia que a fé era uma luz situada acima de sua cabeça, iluminando o caminho de sua razão. Suas Confissões são bela e emocionada filosofia. O discurso claro e lógico, ou seja, limpo e com encadeamento causal, não se separa de uma forte e também clara emoção ou fé. O discurso sem emoção, sem participar de um common ground com experiências marcantes, é frio e duro. Ele não absorve o impacto emocional que lhe causam as críticas e as ideias diferentes, não entendendo novamente sua própria emoção subjacente e sendo incapaz de elaborar um novo discurso. O discurso que sabe se acompanhar, não tenta escamotear, sua emoção, tem o calor e a força do argumento da experiência, mas não assusta os outros, como se “se aconteceu comigo, acontecerá com você”.

A emoção e um discurso apresentados com entrosamento de um com o outro fazem pensar e empolgam, emocionam. Criam uma comunicação entre corações. O autor do discurso emocionado tem as melhores intenções, com relação ao leitor ou ouvinte. Quer que ele seja capaz de pensar sobre suas próprias experiências não sem se emocionar, mas se emocionando de forma mais rica. Um discurso ressentido, que mantém bem guardada a emoção que o gerou, emoção que até pode ser inicialmente boa mas, por ter sido guardada, produz o ressentimento, é duro, no sentido de não permitir ser repensado, ou no sentido de não poder ser tocado por experiências novas, inclusive a própria experiência do discursar, que é um momento que produz emoções.

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