sábado, 8 de junho de 2013

Tempos sem coração

Hoje se fala que Monteiro Lobato era racista. Vi professores de ensino primário afirmando não o lerem. O motivo é que a Tia Nastácia era empregada da Dona Benta. Há também o problema de que, no Caçadas de Pedrinho, a preta, ao ver a onça chegando ao sítio, sobe na árvore feito uma “macaca”. Então não é bom indicar Lobato para crianças. A suspeita de racismo logo se transformou em certeza, pois, quem quer ficar perto de um racista? É preciso mantê-lo à distancia, e nem falar muito no caso.  
 
Marisa Lajolo tem se colocado na defesa do escritor. Ela nos lembra que, no Sítio, volta e meia alguém era adjetivado de macaco. Dona Benta, Marquês de Rabicó, Emilia: bastou que subissem muito rápido numa árvore, para se protegerem de onça, e viraram macacos. Pode-se trazer, ainda, o exemplo do O Presidente Negro. Nos Estados Unidos, no futuro, um presidente negro fora eleito. Contudo, forças políticas se opuseram ao resultado da eleição, chegando a atentar contra ele. Quem diria que nos Estados Unidos, e num tempo mais adiantado, atravancar-se-ia a democracia por racismo?
 
No prefácio do Contos Escolhidos de Monteiro Lobato, organizado e prefaciado por Lajolo, está que ele viveu num cenário de mudanças. Em 1910, São Paulo dava sua arrancada definitiva rumo à modernidade industrial. O cenário cosmopolita, de gostos renovados, vitrines e ruas com produtos e modas chics, encontrava a rua do tráfego de carros, multidões e vapores de fábrica. Levas de imigrantes estrangeiros e migrantes do campo chegavam em busca do seu quinhão, mesmo que tivessem que trabalhar muito. O capital retirava-se das fazendas, deixando-a sem plantação, sem trabalho, sem gente. Jeca Tatu permanecia com sua vida simples, ligada às tradições que a cidade rejeitou como atrasadas, e às doenças que ela sanitarizou.
 
Os contos deste livro são causos do homem na aventura de dominar a imensurável força da natureza. O colono conhecia as matas difíceis, e as manhas da onça pintada. Os truques da menina com saia de chita faziam os cabras terminarem na faca ou na cadeia. O fazendeiro punha sua mão sobre a terra brava, amansando-a para erguer seu reino, contrariando as pragas que tomavam o gado e as geadas que causticavam feito fogo as plantações. São memórias de um tempo que estava para acabar.
 
Havia também o negro visto como ex-escravo. Em “O jardineiro Timóteo”, o personagem principal, o próprio Timóteo, há quarenta anos cuidava dos jardins de uma mesma fazenda. O conto diz que, sendo Timóteo um bom homem, era um negro branco por dentro. A leitura do texto não pode se abalar ou perder o ritmo, por isso que foi dito. A narrativa nos suga para dentro da estória e não permite que desgrudemos do livro. Timóteo não tinha inteligência para conversar com os patrões, nem servia para outro trabalho que não o de ser jardineiro. Ele era para o jardim, o jardim era pra ele.
 
Durante o tempo de cultivo das flores, Timóteo presenciou muitos acontecimentos no jardim e na fazenda. Fez seu registro em cada exemplar floral, por uma associação que apenas sua sensibilidade conhecia.
 
“Timóteo compunha os anais vivos da família, anotando nos canteiros, um por um, todos os fatos dalgumas significações. Depois, exagerando, fez do jardim um canhenho de notas, o verdadeiro diário da fazenda. Registrava tudo. Incidentes corriqueiros, pequenas rusgas de cozinha, um lembrete azedo dos patrões, um namoro de mucama, um hóspede, uma geada mais forte, um cavalo de estimação que morria – tudo memorava ele, com hieróglifos vegetais, em seu jardim maravilhoso.” (trecho de "O jardineiro Timóteo", presente em Lajolo, Marisa. Contos Escolhidos de Monteiro Lobato, pag 95, 2ª edição)

Mãos alheias jamais poderiam tocar seu jardim. “Não têm qualquer delicadeza”, dizia. Apenas ele, por autoridade e sensibilidade, podia mexer naquela terra e em sua vidas, ser leitor da poesia contida no acamado singelo e rústico. Lia em voz alta. Na cozinha as pretas riam da insânia, mas Sinhazinha compreendia “as delicadezas do seu coração”. Timóteo presenteava-lhe sempre a primeira rainha margarida do ano.

Então chegaram os novos donos do lugar. Gente da cidade, com gostos avançados demais. Onde punham os olhos, ordenavam mudanças drásticas. A mobília, as paredes, a divisão dos cômodos, os jardins, tudo era antiquado, ridículo, e seria removido. Nada de hortênsias, esporinhas, flores caipiras. Agora só flor moderna, grandiloquente: crisandálias, crisântemos, o fino da floricultura alemã. Chamaram Timóteo para limpar aquela porcaria. O preto paralisou-se. Suas mãos, que deram a vida, conseguiriam por fim a existências tão existentes quanto a de qualquer um daquela fazenda? E mais nobres, até?
 
A mão que trabalhou a terra ganhou um coração. A terra e seus frutos, remexidos pelo preto, também ganharam coração, alma. Guardavam a memória de gerações de flores e de gentes. Aqueles brancos desconheciam isso. Eram capazes de ceifar vidas, e o pior, sem dar por isso. Nem a morte era feita por suas próprias mãos, então não formavam sentimento.  

A terra vai ficando estéril nesses contos de Lobato. O preto é ignorante, o branco, conquistador do novo. O branco é bom. É bom até o momento em que adentramos no interior das fazendas, e vemos quem lida com a vida e quem apenas manda fazer. Se não suja as mãos não é vivo, tem coisa nenhuma para contar. Nas trocas de dono, ou quando a geada causa a falência e o fim de uma fazenda, nenhum branco das mãos limpas fica para dizer quais eram as vidas e estórias que haviam ali.

Eu andava pela rua, pensando no racismo do Lobato e no Timóteo, quando passa por mim uma negra retinta com vestido branco amarelado, todo de renda. Atravessava a rua no sinal fechado, descalça e aparentemente alheia aos carros. Parecia que tinha caído de paraquedas em um lugar onde os seres movem-se em máquinas barulhentas e apressadas. Ao se aproximarem dela, os carros pararam as rodas e moveram o botão da buzina. Deu um estalo na mulher, que se pôs a correr na direção à calçada oposta. Continuou sem destino, sem olhar para os lados. Quem ali estava a olhou com estranheza. A preta estava fora do seu jardim, como poderia falar?  
 
Esses carros bem que poderiam pegar a estrada que dá na fazenda de Lobato. Nós precisamos (re)adentrar sua porteira e livros. O que ele tem para dizer sobre negros, brancos, colonos, fazendeiros é impossível descobrir sem uma visita ao jardim. Cheire as flores, ouça a narrativa, suje as mãos com a terra. Acalme a pressa que nos faz acreditar não termos nada novo a ouvir; a pressa que não permite vermos aquele que foi chamado de ignorante também ser considerado sábio e dotado de alma. Lobato era ficcionista, não teórico. E não tinha posições pró ou contra o negro. O que ele tinha eram personagens que lutavam, oprimiam, perdiam tudo. Eram ignorantes, sábios, desumanos e sensíveis. Como podem ser ignorantes e sábios, ao mesmo tempo? E o quanto o progresso sem o comprometimento do homem com o que faz e diz acaba comendo vidas, brancas e negras, e nos deixa  incapazes de dizer e ouvir de uma pessoa que cruza a rua?

2 comentários:

  1. Lobato sabia tocar nas palavras chave da ficção. A ficção abre as portas do mundo, para crianças e adultos, e dentro do mundo cabem concepções teóricas: não é teoria mas pode ser ponte para refletir sobre tal. No caso, se há o conceito do racismo em xeque, não dá para abrir mão da ficção e apelar para teoria, há que se pensar nas descrições que a narrativa apresenta e, para além do conceito, nas redescrições possíveis dessa literatura.

    Cadê o link para os seguidores, Thiago?!

    Gostei do nome!

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  2. Coloquei a opção para seguir. Veja aí.

    Beijão, Livia!

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