segunda-feira, 31 de março de 2014
Nossos algozes
A maior parte dos casos de estupro contra a mulher são de autoria de pessoas com quem a mulher já tem alguma relação. Muitas vezes são parceiros amorosos. O estupro não é o sexo com o objetivo do prazer. É uma violência, um ato para subjugar a mulher. Confunde-se bastante sexo com violência. Mas também se elogia o sexo com pegada. Mulheres nuas na tv, revistas, e homens cantando (de forma não grosseira e babaca) mulheres na rua, não têm nada a ver com os problemas da mulher, que são salariais, de obtenção de alguns lugares sociais e de sofrerem violência. Esses problemas precisam ser resolvidos. Agora, confundir sexo com violência e, então, com estupro, só moraliza o sexo edeixa mulheres e homens infelizes. E homens infelizes, e com uma história individual de repressão sexual, podem fazer o que? Estuprar!
Porque uma mulher com pouca roupa aparece dizendo que não merece ser estuprada? Os países em que mais ocorre violência contra a mulher são aqueles de estratificação social mais rígida, e, em alguns deles, as mulheres mais escondem do que mostram o corpo. Então há uma associação nossa da nudez à devassidão moral e, no limite, ao desejo de ser punido.
Não pescamos uma boa ideia deixada pela Marcha das Vadias: mulher pode ser vadia, ou seja, divertir-se como ela quiser, sem moralização de ninguém (nem dela com ela mesma).
Quem disse que a culpa é da mulher?
Homens e mulheres têm convivido mais, em todos os lugares. O reconhecimento de poderes e responsabilidades tem mudado. Talvez, sim, essa mudança se dê em direção a uma equanimidade entre os diferentes. Em pesquisa do IPEA, recentemente divulgada (http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=21847&catid=10&Itemid=9), procurou-se saber, entre outras coisas, como as pessoas percebem os papéis sociais, familiares e sexuais de homens e mulheres, e suas responsabilidades.
Uma pergunta bastante comentada, por pessoas no Facebook, foi se a mulher de roupa curta "merece" ser estuprada. Uma porcentagem acima dos 50% escolheu a opção "concordo". Porque um resultado tão alto, se comparado ao número de casos de estupro? Uma pesquisa como esta pretende ser uma sondagem de comportamentos públicos e privados. Entretanto, ao permitir apenas respostas de múltipla escolha ou binárias, como "concordo" ou "não concordo", faz com que os respondentes só possam lançar mão dos esquemas morais relativos a uma sociedade cuja esfera pública pertence ao homem, e a esfera privada, à mulher. Estes esquemas são o que se tem de mais amadurecido e claro, para responder a perguntas fechadas e que não permitem elaboração. Em pesquisa de respostas abertas, os respondentes pensariam por mais tempo, ponderariam entre experiências antigas e novas. Na pergunta "amulher de roupa curta merece ser estuprada?", provavelente outras respostas teriam sico dadas.
A pesquisa do IPEA, da forma como foi feita, levou a que as respostas partissem de uma compreensão de mundo na qual o homem cuida financeiramente e da honra da casa, enquanto a mulher cuida da sua administração de rotina e moral. Nesse modo de ver, a mulher deve mostrar recato, na rua, ou será a causadora do estupro que venha a sofrer. "Em briga de marido e mulher não se mete a colher", portanto o estupro, violência que mais é perpetrada pelo homem que já possui alguma intimidade com a mulher, deve ficar abafado. Caso venha a tornar-se público, que o homem então seja responsabilizado legalmente, pois houve uma exposição da intimidade e uma falha desse homem em cuidar da honra da família (portanto, as respostas que falam pela responsabilização legal e punição do homem que estupra não são progressistas, como comemorou, apressadamente, o relatório da pesquisa).
Essas atribuições de poderes, reconhecimentos e responsabilidades, repito, dizem respeito a uma organização tradicional, nossa. Ela vem mudando, mas ainda oferece um esquema de raciocínio moral que se usa quando não se pode ou não se quer pensar melhor e reavaliar situações. Quer dizer, somos melhores do que a pesquisa mostrou. Podemos perceber isso, se virmos que temos falado mais em direitos, em justiça e em violência.
E da mesma forma que há pesquisas ruins e respostas apressadas, há reações também apressadas a estas respostas. Homens e mulheres escrevem no facebook que a mulher não é a causadora do próprio estupro. É claro que não é, e é possível dizer uma porção de coisas para argumentar em favor disso. Apenas dizer essa frase, tão sem elaboração quanto as respostas à pesquisa, faz parecer que ainda não chegamos nessa compreensão, e que ela precisa ser apresentada do bê a bá. Ela mostra uma falta de percepção das mudanças nos costumes e na moral. É dita por quem fica meio apavorado quando acha que não há mudança. Esse tipo de pessimismo acaba sendo conservador. É a resposta medrosa da galinha para a raposa, quando, na verdade, galinha e raposa já estão bem humanizadas.
terça-feira, 25 de março de 2014
Para saber o que se fala

Aprendendo a amar Em Família
Na novela Em Família, a personagem Luíza tem um jeito de lidar com o que sente e tem vontade de fazer, enquanto sua mãe, Helena, tem outro jeito, e a avó, interpretada pela Natália do Vale apresenta mais um jeito. Helena namorava Laerte, mas não escondia um sentimento por Virgílio. Podia não ter sido intenção dela provocar ciúmes no Laerte, mas ele perdeu o controle desse sentimento, levando ao esfacelamento do triângulo. Helena casou-se com Virgílio. Contudo, após anos, reconheceu para si mesma que não o amava. Virgílio, para ela, deveria sempre ter sido o terceiro de uma relação tendo Laerte como o segundo. Sem Laerte, não havia como amar Virgílio. Helena jamais disse isso ao marido. Tampouco disse que sua recusa em falar sobre Laerte era não uma raiva contra ele, mas raiva por tê-lo perdido. Helena não falava mais sobre o que sentia. Luíza, sua filha, começando a viver os próprios dramas, não esconde do namorado o quão interessante Laerte lhe parece. O rapaz fica, obviamente, possesso pelo ciúmes. Luíza conta à mãe sobre as qualidades que só ela vê em Laerte. Helena diz não concordar. No entanto, trancada no quarto, a raiva vai ganhando a companhia da admiração pelo antigo amor.
A mãe de Helena, por sua vez, encontra-se apaixonada pelo namorado. Na companhia dele, sai para divertir-se, faz sexo, ri com leveza, apesar de a ex-mulher dele sempre aparecer para perturbá-lo. No diálogo Fedro, e, principalmente na República, de Platão, a alma do homem é dividida em três partes: uma parte do intelecto, uma das emoções, e uma da vontade prática. Cada homem possui uma dessas partes mais desenvolvida, e isto corresponde à posição social e de trabalho que ele deve ocupar, para que a sua cidade funcione bem, funcione ajustadamente, seja justa. O intelectual deveria ser o rei, o rei-filósofo. Exercendo outra função, os defensores e guardas internos deveriam sentir no peito o impulso emocionado para proteger seus concidadãos. Eles deveriam, no entanto, saber controlar-se no que fazem, sua razão servir ao equílibrio das emoções. Já o trabalho de agricultura, indústria e comércio era para quem tinha os apetites, a razão prática, produtora e provedora, ressaltada.
No Fedro, especificamente voltado ao Amor e à alma de quem ama, Sócrates demonstra que o impulso por entregar-se ao amor e atirar-se de uma vez ao amado precisa ser disciplinado, precisa passar por um controle da razão, evitando que o objeto do amor se assuste, e que o próprio amado perca de vista as outras coisas que precisa fazer, na vida, além de namorar. O Amor acontece com alguém, que precisa aprender a vivê-lo. Quando estava na idade da filha, Helena viveu e expressou o quanto quis as próprias emoções. Em adulta, faz o oposto, esconde o que sente, não faz o que quer. Assiste a si mesma, repetida, na filha. Através dela, começa a avaliar a forma como ela mesma agiu, quando jovem. Não deveria ela ter se contido em relação a Virgílio, seu amigo, atentando-se para o trabalho de Laerte em entender aquela relação, e no uso dele da própria razão, em conciliar o amor e o ciúmes que sentia por ela? Como ela poderia ter cuidado melhor do seu amor por Laerte, não confundido-se com Virgílio e direcionando seus atos e expectativas românticas para o primeiro?
Helena tem então oportunidade para visitar o que sente, podendo, afinal, encontrar uma forma de expressar isso. Ela precisará aprender a amar Laerte, já que é por ele que sente isso. Mas todos sabemos que o recomeço dela será atabalhoado, muitos desentendimentos acontecerão entre ela e a filha, ela e Virgílio e entre o que ela acha que deveria sentir e o que de fato sente, por Laerte. Ela voltará a agir como jovem, para poder amadurecer. Enquanto isso, sua mãe está curtindo. Ela não sabe tudo sobre a vida do seu namorado. Não sabe se ele a trai, nem procura saber. O amor é coisa que acontece poucas vezes na vida de uma pessoa. Quando acontece. Na maturidade, já se sabe que, ao lado do auto-controle, o amor tem um quê de cegueira, um não saber de tudo, em nome do relaxamento e do prazer. O desastre pode acontecer, e o amor acabar, mas não se morrerá disso, certo?
Sócrates, um chato!
"Ahaha, que bestão esse Sócrates! Quem pergunta o que é ser amigo? Ahaha!" Você já se perguntou o que faz alguém ser amigo? Ser justo? Ser feliz? Sabe, essas perguntas podem melhorar o seu ser amigo, justo e feliz. Melhora o ser essas coisas, porque melhora o ser que quer ser essas coisas, enquanto ele se encaminha para isso. "Ah, que cara mais chato, esse Sócrates". Chato mesmo. A Mosca de Atenas. E que vai chegar do seu ladinho e te perguntar sobre o que você acha que sabe. Como não responder perfeitamente sobre o que se sabe? Sócrates foi chamado de arraia, por um de seus interlocutores. A conversa dele, o elenkhos, levava o interlocutor a se auto-refutar e não saber mais o que dizer para explicar o tema em pauta. O outro era atingido pelo aguilhão da arraia, e ficava paralisado. Era realmente incômodo, esse Sócrates! Mas em tempos em que se fala qualquer coisa sobre direitos humanos, justiça e educação, sem saber o que eles significam, é muito necessário alguém que interrogue o que achamos que estamos fazendo, e mostre a distância que nos separa do fazer-nos melhores do que nós mesmos, e da chance de fazermos alguma coisa certa.
Vai ter festa

segunda-feira, 24 de março de 2014
Pudores bobos
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