segunda-feira, 24 de março de 2014

Pudores bobos

Não temos uma tradução para "underachiever". Underachiever é aquela pessoa que conquistou menos, na vida. É a criança com maus resultados na escola.Temos pudor em chamar alguém de burro ou incompetente. Os pobres sempre puderam apenas alcançar uma formação adequada a serem trabalhadores desqualificados, não reconhecidos e mal-pagos nos três setores da economia. A escola democratizou-se, mas foi abandonada. Eles convivem com gente de condições de vida diferente. Estes alcançam mais prestígio, dinheiro e auto-valorização do que os pobres. Sabemos que essa diferença deve-se a pontos de partida desiguais. Mas, como não oferecemos coisa melhor aos pobres, tratamo-os com falsa condescendência (condescendência real já é ruim, por ser a suposição de que o outro é irremediavelmente café-com-leite em algo). Convive-se com ele porque precisa-se do seu serviço barato, mas sente-se medo e evita-se que ele se revolte. Uma das coisas que gosto no livro "Justiça", do Michael Sandel, é que mostra coisas que para o americano não despertam pudor, deixando ver os nossos pudores. O garoto que vai mal na escola, nos EUA, é underachiever. O cara que ganha pouco é loser. O sucesso pessoal é valorizado e incentivado, e cada um sente que, obtendo-o, levará o país pra frente. Bom é ter sucesso, e merecê-lo. Para Locke, o individuo merecia o usufruto exclusivo do que fosse propriedade dele: frutos de trabalho, opiniões, corpo e vida. O rico ganha mais dinheiro porque o merece. Rawls corrigiu isso: o rico pode não ter mérito nenhum por isso. Pode ter nascido em família rica ou atuar num mercado que valoriza mais as características ou produtos dele. Nos dois casos, teve sorte na loteria biológica (primeiro caso) ou mercadológica (segundo caso). Rawls propõe que mais benefícios sejam dados a quem começa a viver em desvantagens. Melhores escolas para estudantes pobres, cotas etnicas para grupos excluídos de certos lugares. Com a equalização dos pontos de partida de estudo e trabalho, reduz-se a desigualdade depois. Aí, sim, quem se deu bem teve mérito. Mérito é uma palavra que odiamos. Quem se dá bem, aqui, no fundo sabe que teve sorte. Ele sente-se mal pelo pobre. Acaba que se dar bem ou ser um ferrado na vida viram qualidades morais: quem se dá bem é egoísta, o ferrado é coitado ou vagabundo. Se tratássemos com sobriedade o mérito, discerniríamos do que ele é feito. Buscaríamos que mais gente pudesse se dar bem, e não deixaríamos isso para uns poucos envergonhados. E o"underachiever" ou o loser não seria abafado, mas seria um aviso de que pode estar havendo uma corrida injusta. Chamar todos de gênios, num dos países mais desescolarizados do mundo, é que não ajuda.

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