domingo, 4 de dezembro de 2016

Um simpósio sobre a transferência


No Seminário 8, Lacan apresenta o Banquete, de Platão. Seu objetivo é investigar o fenômeno da transferência. Freud conceituou este fenômeno como a revivência, pelo paciente, de antigas posições amorosas suas. Lacan entenderá este fenômeno como amor, especificamente amor-desejo, amor que busca algo. Neste comentário ao Banquete, encontrará na relação amorosa entre Sócrates e Alcibíades um rico material para se pensar a transferência. O que deseja o amante e como é desejado o amado, explicam essas mesmas posições.

A transferência ocorre na relação entre o paciente e o analista, e está nos gestos e falas daquele. O analista fica embaraçado: ao mesmo tempo em que deseja que o paciente continue indo à análise, teme as consequências de ser amado por ele. Todo analista repete o embaraço que Breuer sentiu com o amor que Anna O lhe dirigiu.

O paciente chega à análise para falar sobre seus sofrimentos. Ele quer saber “o que tem”. Ele não sabe o que tem. Destaca-se, aí, o não saber. O inconsciente, como uma instância desconhecida pelo sujeito, e que nele produz os seus efeitos, é descoberta freudiana. Investigando e tratando os fenômenos histéricos, Freud descobriu a existência de um pensamento que opera independente da consciência. O paciente é tomado por uma instância que o faz falar e agir independentemente da sua vontade e da razão do seu eu.

Este não saber, Lacan o entende como um saber que foi excluído da consciência e constituído como inconsciente. Esse saber excluído funciona como uma cadeia significante, porém inconsciente. Ao contrário do que o sujeito da consciência imagina, a fala do paciente não se conduz apenas pela cadeia significante consciente. Em maior medida ela se conduz pelos caminhos do inconsciente.

Durante a análise, o analisando rememora pontos do seu passado. Estes pontos emergem a partir da cadeia de significações inconscientes, que se presentifica na forma de transferência, e que serão interpretados pelo analista. A transferência será o ambiente onde ocorre a fala do analisando, e também o instrumento para a sua interpretação.

“Nas condições centrais, normais, da análise, nas neuroses, a transferência é interpretada sobre a base, e com o instrumento da própria transferência. Não poderá, então, ocorrer que não seja da posição que lhe é dada pela transferência que o analista analise, interprete e intervenha sobre a própria transferência.” (LACAN, 2010. p. 219)

O passado do analisando, contudo, presentifica-se também em ato. A transferência é a reprodução deste passado na relação entre o analisando e o analista. É a reprodução dos primeiros amores dele. Não há, da parte do analisando, qualquer conhecimento acerca do que está amando, no analista. Como dizer aquilo sobre o qual não se sabe?

“Quando se chega, e em muitos outros campos além daquele do amor, a um certo termo que não pode ser obtido no plano da épistèmè, do saber, para ir mais além, é necessário o mito.” (LACAN, 2010. p. 155)

A filosofia antiga recorre ao mito, a fim de elaborar o seu saber. As narrativas de Homero são uma das principais bases culturais de Platão. O que distinguia o homem dos deuses era a mortalidade. Os deuses eram sem duração, eternos. De acordo com o estoicismo, os deuses eram uma realidade material “fina”, sutil e que recobria todo o existente. O saber do homem era limitado por suas vivências imediatas e por sua condição de mortal. O saber de natureza divina era o logos.

Sócrates filosofava por Querofonte ter lhe dito que ele, Sócrates, era o mais sábio dos atenienses. Querofonte ouviu isto das pitonisas do Templo de Apolo. Era um recado divino para Sócrates, que o fez investigar sobre o que os atenienses sabiam. Ou melhor, Sócrates pretendia conhecer, e cuidar, do cuidado de si dos atenienses, ou seja, do saber que eles tinham sobre a própria alma, em relação ao lugar que eles queriam ocupar na pólis. Sócrates perguntava para descobrir se eles de fato possuíam conhecimento acerca do que se arvoravam saber.

Sócrates também era, a todo momento, advertido por um daimon, que o acompanhava. Com essa presença divina, o filósofo buscou a sua ciência. Nos diálogos platônicos, Sócrates nunca discursa a partir de si mesmo, mas por inspiração divina. É como se ele, ou qualquer outro homem, não pudessem ter acesso a um conhecimento de uma ordem para além deles.

A respeito do amor, do qual se dizia mestre na arte, Sócrates aprendeu com Aspásia, amante de Péricles. E também com Diotima, uma mulher da Mantinéia, “que era sábia tanto nesta matéria quanto em muitas outras” (PLATÃO, 2012. p. 77). De Diotima, Sócrates traz para o Banquete um dos mais belos mitos a respeito de Eros. É o mito de Poros e Penia.

Nasceu Afrodite, e os deuses reuniram-se para festejar. Poros fartava-se de néctar. Em certo momento, ele adormece, embriagado. Poros significa expediente, recurso. Penia assistia à festa sentada nos degraus que davam acesso à porta. Penia era a miséria, ausência de recursos. Ela não estava à altura dos outros deuses.

Ao ver Poros adormecido, Penia deita-se com ele. Como resultado disso nasce Eros. Eros é filho do recurso com a falta. Está no meio de ambos, não sendo destituído de posses, como a mãe, nem sendo o Recurso, como o pai. E nasce no mesmo dia da deusa da beleza. Em relação à Beleza, Eros também é intermediário: ele não pode ser totalmente destituído de beleza, pois só poderia amá-la conhecendo-a ao menos um pouco. E ele não pode ser pleno de beleza, do contrário não a amaria, ou seja, não sentiria a sua falta e não a desejaria.

“Este amor de que falas, é ou não é amor de alguma coisa? Amar ou desejar alguma coisa é tê-la ou não tê-la? Pode-se desejar o que já se tem?” (PLATÃO, 2012. p.74), Sócrates interroga Agatão.

A quem ama, o objeto do desejo está ausente. É algo que lhe falta, por isso o deseja. Amor é, aqui, falta e desejo. O amor está entre o amante e o amado, entre o sujeito do desejo e o objeto do desejo. A respeito do amante, Sócrates novamente pergunta a Agatão: “Consequentemente, a essa pessoa e a geralmente todos aqueles que experimentam desejo, o experimentam por algo que não está disponibilizado ou presente; por algo que não possuem, que não são, ou de que carecem, sendo isso o objeto e do amor?” (PLATÃO, 2012. p. 75)

A cena final do Banquete é aquela na qual, segundo Lacan, ocorre uma virada: ao invés de falas elogiosas sobre o amor, os presentes passam a elogiar uns aos outros, o que significa que passam a agir no amor. Alcibíades entra, bêbado, disposto a exprimir o que Sócrates é para ele. E também o que ele gostaria de ser, para Sócrates. Ele entra bêbado em festa de homens que controlam a si mesmos na fruição do vinho. “Alcibíades espera muito de Sócrates.” (LACAN, 2010. P. 213).

Segundo Lacan, nesta cena encontra-se o fundamental do que ele chama de posição do sujeito do desejo. O sujeito é constituído por um splitting, desdobramento de duas cadeias significantes. Essa hipótese do desdobramento se justifica, dada a relação lógica inicial do sujeito com o significante. O sujeito é entendido como o suporte da cadeia significante. A cadeia significante se inscreve no sujeito como uma marca. Por essa marca deslizam indefinidamente os significantes da cadeia.

O infinito deslizamento dos significantes é um elemento dissolutivo, no sujeito. Há, contudo, um objeto que estanca esse deslizamento. É um objeto que constituirá uma fantasia fundamental, na qual o sujeito se reconhecerá, ficando fixado. Essa função do objeto o faz ser chamado de objeto a. Identificando o sujeito à fantasia fundamental, o desejo assume consistência. Esse desejo se coloca no sujeito como desejo do Outro, A.

“A é definido para nós como o lugar da fala, esse lugar sempre evocado desde que há fala, esse lugar terceiro que existe sempre nas relações com o outro a, desde que há articulação significante.” (LACAN, 2010. p. 215)

A é, em última instância, para quem se fala e por quem se fala, quando o sujeito se dirige a a. Em cada demanda de amor, é ao Outro que dirigimos nossas súplicas. Ele está além da demanda pelo objeto amado.

Alcibíades deseja Sócrates. Este desejo foi desencadeado pelo agalma de Sócrates, um objeto indefinível, uma joia, que ele encerra dentro de si mesmo. Sócrates, contudo, não se põe na posição de ser amado. Ele se põe como vazio, não há nada nele para ser amado. De fato, Sócrates amava Alcibíades. “Sócrates é alguém cujas disposições amorosas se voltam para os belos rapazes.” (LACAN, 2010. p.177).

Alcibíades, apesar de não ser tão jovem, conservava-se nesta aparência. Ele possuía pretensões políticas. Teria ele o necessário, para isso? Sócrates frequentemente estava com o condecorado general, orientando-o no conhece-te a ti mesmo. O filósofo também o salvou, por duas vezes, em batalhas.

Em sua verborragia, Alcibíades se queixou de que Sócrates jamais deu sinais do amor que sentia por ele, amor que ele tinha certeza que existia. As posições do amante e do amado se inverteram, e Alcibíades tornara-se amante de Sócrates, ou seja, passou a desejar algo dele, uma atividade, enquanto se apassivava.

O discurso de Fedro, proferido no início do evento, falou sobre esta troca de posições entre o amante e o amado. O destaque nisto é Aquiles e Patroclo, personagens da Ilíada, de Homero. O maior guerreiro do lado grego vivia com seu amante e admirador incondicional. Patroclo servia Aquiles como a um deus.

Aquiles andava encolerizado com o comandante geral das hostes gregas, Agamêmnon, e retirara-se da guerra contra os troianos. A certa altura, os gregos jaziam encurralados nas naus. Patroclo, então, vestiu as roupas terríveis do amado e lançou-se à luta. À visão dele, os inimigos petrificavam. Outros tantos ele matou. Heitor, o maior dos troianos, pusera, então, fim a esta folgança, assassinando Patroclo.

Sabendo disso, Aquiles, desesperado, caiu de joelhos. Arrancou os loiros cabelos e trocou-os por terra, retirada do chão. Vestido de nova armadura, fabricada por Hefesto, foi matar troianos, e também Heitor. Aquiles sempre soubera que estava destinado a uma curta vida. Então ela deveria ser gloriosa. Agamêmnon ameaçara esta glória, mas isso agora era secundário.

Aquiles era um amante ferido, e Patroclo havia lhe mostrado o caminho para o cumprimento do seu destino. Matar Heitor seria seu último feito, o maior de todos. Os deuses aplaudiam seu gesto de amante, por ele ter saído da posição de amado.

Sócrates era oco, não podia ser amado. Alcibíades investia, perguntando quando eles passariam a noite juntos. Mas a essência do filósofo é “este ouden, este vazio, este oco.” (LACAN, 2010. p. 198)

Sócrates observa que Alcibíades viu nele algo que tornaria, ao próprio Alcibíades, melhor. Em troca disso, Alcibíades oferecia a sua beleza. Este algo que Sócrates possui é uma beleza de outra qualidade. Sócrates não cede aos apelos de Alcibíades pois, fazendo isso, estaria trocando sua própria beleza distinta por prazer corpóreo. Ele não faz isso. E também não oferece a Alcibíades a doxa, a palavra fácil dos aduladores. Ele oferece a verdade.

“Filosofia é aprender a morrer”, frase de Montaigne. O filósofo sabe que suas experiências corporais são fonte de um saber qualquer, não de conhecimento. O verdadeiro saber é alcançado quando o olho da alma, da sua parte nobre, o intelecto, eleva-se ao seu ambiente original. O Mundo das Ideias, local de passeio dos deuses, é o lugar do saber sobre como as coisas realmente são.

O método interrogativo de Sócrates, o elenkhos, que é o da refutação, visava que seu interlocutor, ao perceber a incoerência entre suas próprias respostas, também percebesse que faltava-lhe um saber sobre a matéria a respeito de que conversava com o filósofo. No diálogo Hippias Maior, Sócrates conversa com o sofista deste nome acerca da beleza (como característica de coisas particulares). Sócrates pede que o outro lhe dê elementos para que ele, Sócrates, possa mais tarde convencer um difícil amigo seu, com quem ele vive. Esse íntimo amigo não é outro senão ele mesmo. Sócrates queria convencer a si mesmo do que Hippias lhe dizia.

A pior coisa, para o homem, é discordar de si mesmo. É fazer algo errado, e à noite ter de dormir acompanhado desta pessoa. Entre eu e eu mesmo deve haver amizade, e isso, aqui, tem o sentido de coerência do que se diz. Lacan aponta que, para Sócrates, a verdade está toda no discurso. Ela não está na fala que provém das experiências particulares da pessoa – estas ficam armazenadas e são formadoras da nossa psicologia individual, o si mesmo, auton hekaston. O saber perene das coisas, o saber verdadeiro, é acessível pelo mesmo em si mesmo, auto to auto.

Esta é a alma de natureza divina, e que um dia passeou, mesmo que brevemente, no rastro do cortejo de Zeus pelo Mundo das Ideias. Esta alma é uma particularidade do filósofo, e seu trabalho, na vida que tem aqui, é relembrar as coisas que um dia ele soube, mas que estão esquecidas.

Sócrates era enraizado em Atenas. Apenas duas vezes ele saiu de sua cidade, e por motivo de participação em guerras. Ele dependia de Atenas, para filosofar. Mas ele era estranho, para seus concidadãos. Sócrates preocupava-se antes com o conhece-te a ti mesmo, dele e dos outros, do que com o saber dos rapsodos e sofistas. Ele negava tanto a autoridade da tradição, dos primeiros, quanto do poder de convencimento, dos segundos. Ele ria da nossa satisfação com parcos saberes. A verdade estava na coerência do discurso, dos significantes.

Sócrates não hesitava entre viver uma vida sem conhecimento ou uma vida com conhecimento de si. O saber sobre aquilo que é não pertence a esta vida. Pertence à alma eterna que, assim como o conhecimento, tem natureza divina. A coerência de discurso, que um homem pode atingir, precisa deste fundamento no além. O lugar de Sócrates nesta vida, então, é um atopos, um lugar insituável.

Podemos considerar uma topologia entre-duas-mortes: o homem está diante de duas fronteiras entre a vida e a morte. A primeira fonteira é a que decorre do envelhecimento, da doença ou dos traumas físicos, que interrompem a vida. A segunda fronteira, que é essencial para entendermos, por exemplo, a glória, kléos, do homem antigo, é a da aniquilação, não da própria vida, mas do próprio si mesmo, a fim de se “inscrever nos termos do ser.” (LACAN, 2010. p.128).

Lacan nos fustiga, fazendo-nos ver que no amor, por mais que nos esforcemos para dar algo a alguém próximo e querido, fica a sensação de que algo está faltando. Uma relação, uma troca, é um girar em torno da fantasia que se tem acerca do outro.

No entre-duas-mortes, o desejo de algo, de um objeto, é esvaziado. O que há é desejo de discurso. Algo fala no homem, um isso. Um isso fala no homem, e um sujeito impensável se apresenta. Havíamos falado que, no momento em que o sujeito se fixou em a, o outro próximo, estancando o escorrer da cadeia significante, o desejo assumiu consistência. Ocorre que este desejo também se enraíza em A, é desejo do grande Outro.

O amor ao outro próximo é um endereçamento ao Outro. A pessoa a quem o sujeito ama é subitamente volatilizada.

“Tudo o que sabemos sobre o inconsciente, desde o início a partir do sonho, nos indica que existem fenômenos psíquicos que se produzem, se desenvolvem, se constroem para serem ouvidos, portanto, justamente para este Outro que está ali, mesmo que não se o saiba. Mesmo que não se o saiba que eles estão ali para serem ouvidos, eles estão ali para serem ouvidos, e para serem ouvidos por um Outro.” (LACAN, 2010. p. 221).

O amante quer transmitir um recado, que ele sabe não compreensível ao outro, ou até por si mesmo. O Outro é o destinatário dos nossos atos, sobretudo dos nossos atos de amor.

A fala de Alcibiades, no Banquete, é uma confissão no tribunal do Outro. Ele tentou dobrar a vontade de Sócrates, subordiná-lo como objeto do seu desejo, agalma, o seu bom objeto. Por isso, ele quis um sinal do amor de Sócrates por ele. A mola do desejo é a queda do Outro em outro. É uma tentativa de ignorar que, no amor, na verdade o que se faz é dirigir-se a A, algo além. E é a esperança de se satisfazer com a, em receber dele exatamente o que se deseja. Bem, uma vez que a expectativa que o amante tem do seu amado refere-se ao desejo, que está enraizado no grande Outro, ela não é passível de satisfação, nesta relação.

Sócrates é cúmplice deste grande Outro. Quando alguém estende sua mão a uma flor, uma mão pode esticar-se da flor ao amante. Tal é o milagre do amor. Ao ocupar-se do gnothi seauton, ocupe-se de sua alma, Sócrates faz-se cúmplice não do desejo pelo outro, mas pelo grande Outro. Lacan lembra de Rute, que perdeu o marido mas continuou acompanhando Noemi, sua sogra. Ambas voltaram a Belém, e estavam vivendo na pobreza. Noemi sugeriu que Rute fosse ver o que poderia arranjar nas terras de um certo parente seu, de posses. Ela prontamente atendeu. Rute catou as espigas que os trabalhadores de Booz deixavam cair.

Após um segundo dia de trabalho, a dedicação de Rute foi notada por Booz. Noemi mandou-a perfumar-se e esperar o momento certo, com Booz. Noemi viu-o deitado, após ele embriagar-se. Ela deitou-se com ele. Rute não pensava no motivo porque estava fazendo essas coisas. Ela apenas fazia. O propósito disso estava em Javé: por um caminho insondável, o plano era estabelecer justiça para com o pobre.

Noemi, para sobreviver, via-se obrigada a vender suas propriedades. Pela lei do levirato, o pobre tinha direito a que o parente mais próximo, caso tivesse condições, comprasse a propriedade dele. Assim, a propriedade não se afastava completamente do pobre. Booz consultou o parente mais próximo de Noemi. Vendo que ele não se interessava em “resgatar” os bens de Noemi, ele mesmo aceitou fazê-lo. Booz comprou as terras do filho de Noemi, e casou-se com Rute.

O filho de Rute e Booz foi considerado um filho de Noemi, uma graça de Javé para ela. E os bens deles também permaneceram próximos dela. As ações de Javé ocorrem por caminhos que o homem desconhece. Sócrates é um personagem que age misteriosamente. Nem sempre se sabe o que ele quer. Ele age pelo desejo do Outro, e suspeita disso. E ele entende o amor de Alcibíades por ele como amor de transferência, e procura dirigi-lo ao local do seu verdadeiro desejo.

O amor, sendo filho da penúria, é o desejo de possuir algo. Mas o que? Sócrates amava os belos rapazes. No diálogo Fedro, a beleza do amado, quando vista pelo amante, adentra os olhos deste, inunda-os. A alma do amante se aquece, suas penas voltam a brotar e ela fica novamente emplumada, ela que anteriormente era assim, antes de ficar completamente desnuda. Com as asas refeitas, a alma pode alçar voo para o mundo inteligível. A beleza é o meio pelo qual o filósofo pode ir além do físico e alcançar o mundo das Ideias, ou seja, superar o saber extraído do sensível, indo em direção ao saber verdadeiro.

De volta ao Banquete, Lacan diz que o homem encontra a beleza fora do domínio do ciclo da vida, da cadeia do ser gerado e do ser perecível, que o determina como mortal. Num lugar mais elevado é onde o homem busca a essência do seu ser. O belo é o modo como o homem pode aproximar-se do eterno.

Sócrates se diz servidor de Eros. Assim, ele se serve do deus. O objetivo da análise é o Eros do paciente. Não se busca satisfazer a uma demanda, seja do paciente ou do analista, a respeito do que seja o “bem” dele. A análise quer por em evidência o desejo do paciente.

O que caracteriza a posição do amante é que algo lhe falta, e lhe faz desejar. Ele não sabe o que lhe falta, e essa insciência é a do inconsciente. O amado, por sua vez, não sabe o que ele tem, que o faz ser objeto do desejo do amante. “O que falta a um não é o que existe, escondido, no outro. Aí está todo o problema do amor.” (LACAN, 2010. p. 56).

Na análise, o amante encontrará a sua falta. Ele sentirá a falta, pois o analista deixará vago seu próprio lugar. O analista não dá sinais do seu desejo, não como a flor que estica a mão de volta ao seu amante. Ele deixará espaço para o paciente atuar com o objeto a. O paciente deve viver o seu desejo, embora o que possa realizar esse desejo não é possuir o objeto desejado. O desejo emergirá como uma realidade como tal.

A análise é como a investigação socrática: uma escola de amor. O paciente fecha-se com o analista, para aprender a amar. A transferência, revivência que o paciente faz do seu modo de amar infantil, é um cenário preparado pelos impulsos, dele, que estão afastados da consciência e da realidade. O paciente não sabe porque se relaciona assim com as pessoas, como também não sabe sobre o próprio sofrimento. Ele supõe que o analista saiba sobre essas coisas, e que um dia ele lhe dirá.

O analista pede ao paciente que siga a regra da associação livre, que consiste em dizer tudo o que se passa em sua cabeça, procurando não reter nada. Em um momento de sua fala, porém, o paciente para. Ele percorreu seus pensamentos conscientes, e chegou aos inconscientes. Em palavras lacanianas, percorreu os significantes conscientes e chegou aos inconscientes. E parou de falar por ter tocado em representações inconscientes investidas de energia libidinal, representações estas que aparecem ao paciente como estando diretamente relacionadas à figura do analista.

O paciente move-se pela falta, a qual supõe que o objeto amado, o analista, satisfará. No momento em que para de falar, e passa a atuar a fantasia, o paciente está, pode-se dizer, no amor-cego, na paixão. O paciente assim atua justamente para não ter que continuar rememorando o próprio passado. Breuer assustou-se com o avanço apaixonado de Anna O sobre ele. A sede pelo objeto amado pode ser entendida como um amor desmedido. Paixão é uma relação especular: dá-se ao outro o que se imagina que ele queira. O paciente orientará a sua fala na busca por conquistar o analista, ter a posse do agalma.

A análise segue na tentativa de fazer o paciente, que está nessas condições, continuar percorrendo a cadeia dos significantes inconscientes, ou seja, continuar falando. A aposta é que o paciente vá se apaixonando menos pela figura do analista, objeto a que não corresponde ao seu amor, mas por confessar-se a A. O paciente deverá apaixonar-se pelo enigma que é ele mesmo.

Bibliografia
BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1990.
FREUD. Sigmund. A dinâmica da transferência. In. Obras Completas. Vol 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
GARCIA-ROZA, Luis Alfredo. Freud e o inconsciente. 2. ed. 25. reimpressão. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
GHIRALDELLI JR., Paulo. Sócrates, pensador e educador: a filosofia do conhece-te a ti mesmo. São Paulo: Cortez, 2015.
HOMERO. Ilíada. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2014.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 8: A Transferência. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
PLATÃO. O Banquete. São Paulo: Edipro, 2012.
PLATÃO. Fedro. São Paulo: Edipro, 2012.

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