terça-feira, 1 de março de 2016

Gloriosos bastardos



Um jornalista desenvolve o assunto sobre o qual fala, inserindo-o numa narrativa com personagens, dados sobre lugares e datas, e curiosidades. Há anos o Oscar, na Globo, tem sido apresentado pela bela jornalista Maria Beltrão. Ela cumpre estes aspectos da sua função, e também o que vem sendo uma nova exigência do público: a opinião pessoal. A tv quer manter-se relevante, diante das redes sociais de internet, em que o eu é o show.

Maria Beltrão conta com o convidado especialista para falar de forma técnica, ou melhor, dar uma opinião pessoal com verniz técnico. Mas ela também não deixa de comentar sobre a elegância da Meryl Streep, do talento ainda surpreendente do Di Caprio.

As pessoas, hoje, tornam-se celebridades ao associarem a atração de milhões de views na internet com uma história pessoal contendo algum lance curioso. Não é necessário que se tenha mais de vinte e cinco anos de idade, pois a história da celebridade deve caber em um vídeo de youtube, ou em uma entrevista de tv aberta, ou ainda em seis meses de produção de um livro de duzentas páginas.

Qual foi a atitude que determinou aquele sucesso, ou qual foi o percalço da vida que precisou ser superado, são os pontos em que se apoiam as autobiografias das novas celebridades. A própria vida as torna especialistas no assunto sobre o qual elas falam, que vai do marketing à maquiagem. Uma psicóloga torna concorridas suas palestras com o "conhecimento sobre espiritualidade" que obteve ao passar por momentos difíceis em sua vida. O saber técnico, oriundo da formação, não interessa. Formação lembra curso longo, alguém formado lembra discurso longo, enquanto o que se quer são dicas associadas a imagens.

Algumas dessas celebridades surgidas na internet, inclusive, publicaram vídeos chamados "Draw my Life", em que contam suas vidas através de cartazes com desenhos e palavras escritas. A narrativa oral segue as imagens, muitas vezes as secundando em importância. Como não pode demorar, a celebridade fala animada, divertindo-se consigo mesma. A objetivação de si, em vídeo, permite esse auto-entretenimento. Um acontecimento triste entra nessa história como uma pedra rapidamente superada. Como a pessoa que está ali é o resultado daquele percurso, o que era um grande problema virou essa pedra pequena.

As antigas celebridades da tv são cobradas a essa exposição acelerada e com muitas informações, unindo especialismo e pessoalismo. Glória Pires foi acusada de não ter visto os filmes do Oscar, a que foi chamada, pela Globo, a comentar. Maria Beltrão passava as informações objetivas sobre os filmes, e jogava para a atriz a fala meio pessoal, meio especializada.

Glória Pires é atriz de tv e cinema brasileiros, tem cancha neste tipo de produção. Na mentalidade nossa, não se espera dela cursos com grandes diretores ou em grandes escolas, mas a vivência de quem esteve onde poucos estiveram: sets de filmagem, convivência com galãs (de preferência com a ocorrência de beijos e sexo), maquiagens e roupas para aparecer mais bonita do que as outras mulheres, apresentações espetaculares, etc. Ela não tinha que ser deslumbrante e inteligente como A Mulher, mas ser mais do que as mulheres que vemos em nosso dia-a-dia. Nossas experiências são muitas, então a metafísica que temos é um salto a partir desse concreto que passa rápido. A Mulher é estável demais para o nosso tempo.

Ninguém se impressionou com o "atuação maravilhosa", dito por Glória. O "não assisti esse filme", que ela disse a respeito da animação Divertidamente, mostrou o que ninguém imaginaria ver na transmissão de uma festa glamourosa, ocasião exclusivíssima: Glória simplesmente não tinha nada a contar sobre aquele filme, não havia nada em seu saco para dizer a respeito dele. E ela estava ali, na tv, desanimadamente.

Ao dizer que não havia assistido ao filme, Glória deixou indisfarçado que estava ali como uma igual ao telespectador, que também não tinha nada a contar sobre os filmes do Oscar, exceto a opinião, formada no facebook, de que o Di Caprio deveria ganhar. Não pergunte o nome do filme, não seja chato de perguntar a alguém se assistiu. Di Caprio tinha que ganhar, de acordo com o consenso da rede social, produzido com memes, imagens e frases curtas e bem humoradas com o ator. Produziu-se a opinião de que ele deveria vencer, assim como a de que Glória estava perdida na transmissão ao vivo.

As muitas imagens que as pessoas têm na cabeça acerca do Di Caprio formam uma história de gritos, emoções e caras que mais que justificam o prêmio para ele: como um ator "veterano" ainda não recebeu a estatueta? Sobre Glória Pires as pessoas pensam nas gêmeas Ruth e Raquel, e nada mais se sabe sobre ela. O que se sabe sobre algo são as imagens que se vê a respeito dele. Glória apareceu na transmissão do Oscar comportando-se como eu e você nos comportamos na sala de nossa casa (inclusive, foi o que ela mesma disse que havia feito, em um vídeo divulgado posteriormente: https://www.youtube.com/watch?v=BE0Y1wiigHU).

Alguém como nós, com imagens e uma narrativa conhecida por poucos, queríamos ser projetados na tv, na noite do Oscar. Era para sermos celebridades. Glória já não era mais tão célebre, pois seu desempenho não apresentou nada de notório. Ou melhor, ela celebrizou-se por estar desanimada e perdida, semelhante a nós mesmos. As pessoas no sofá, de short e sem camisa, que esperavam viver como se fosse delas o desempenho de se vestir, gesticular e falar sobre Oscar, viram-se representadas por elas mesmas, pois Glória agiu como se estivesse de pijama mesclado furado embaixo do braço, há dois dias sem tomar banho.

No vídeo em que respondeu às críticas recebidas, Glória aparece sem maquiagem e chamando as pessoas de "gloriosas e gloriosos". Com essas palavras, ela inseriu-nos no seu público. Somos gloriosos, compartilhamos da glória dela. Mas ela diz isso em tom baixo, sem afetação, sem parecer uma celebridade. Se as novas celebridades falam muito e alto, a "celebridade da Globo" quer mostrar preeminência aparecendo blasé e low profile, depois do banho.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Excelente texto. Você sintetizou com maestria esse rebuliço que foi a aparição da Glória Pires na apresentação do Óscar como comentarista.
    A TV é uma caixa de delírios e projeções para além da vida real. E os espectadores não querem se ver representados nela

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