domingo, 20 de março de 2016

O vacilão


Um dia eu descobri que o Jaspion, quando estava de armadura, era feito por outro ator. Então Jaspion não existia? Isto não me preocupou, pois era claro que ele existia. Existia sem armadura, e também de armadura, na tv. Ele fazia piadas, principalmente gags físicas, ajudava pessoas e combatia monstros. Eu o assistia diariamente.

Aquela descoberta, no entanto, fazia-me perguntar sobre a quem deveriam ser dirigidas as honras pelas vitórias do Jaspion. O rosto que eu conhecia não podia ser o dono delas, pois elas eram obtidas com o guerreiro totalmente vestido. Sem armadura, a capacidade de luta era limitada, ele dava conta dos inimigos mais fracos. Mas os grandes monstros só podiam ser batidos pela armadura de metal, que manuseava armas, possuía veículos e grande força e agilidade. E que não mexia a boca ou os olhos enquanto falava. Era como um perfeito robô, apenas semelhante a um humano pelo desenho corporal.

Apareceu aqui em casa uma garrafa de plástico com segmentações, marcações de medidas. Não há números. Coloco-a para encher e vejo a água superando marcação por marcação, até a boca. Coisa para a qual um gato estica o olho. A virtude da garrafa, ser bem enchida e bem esvaziada, é melhor realizada nesta garrafa, pois é possível ver o quanto está cheia e o quanto está vazia. Uma garrafa lisa, sem marcações, não permite que se marque o nível de um líquido que esteja a meio caminho. Mas o quanto o nível de água está a meio caminho, num pedaço de marcação que é, para os olhos de um gato, mais extenso do que para os olhos meus? Dá a impressão de exatidão. Impressão.

A garrafa com marcações, a meu ver, tem méritos. O robô Jaspion levou os méritos das vitórias. No entanto, eu gostaria de dá-los ao humano Jaspion, pelo seu rosto amigo e corpo divertido. Jaspion humano caía no chão, chocava-se com o de seus companheiros, dançava rebolando. Era inexato. O do Jaspion robô nunca sofria nada, seja por causa de si mesmo, seja por causa dos outros. Quando sofria um ataque, e tinha as próprias forças consumidas, ele voltava a ser humano. Então o Jaspion humano procurava abrigo. Na iminência de sofrer um ataque perigoso, ele fazia-se novamente robô. Ele precisava de uma segurança e de uma destreza super-humanas.

Na Ilíada, Aquiles é um homem que acumulou vitórias no campo de batalha. Lutando, a armadura não o cobria inteiro, o elmo não escondia todo o seu rosto. Mas o rosto de Aquiles era o de um homem que jamais vacilava na sua dureza, ele vivia para lutar, e morreria após a cumprir sua última luta. O rosto e o corpo de Aquiles não erravam na hora da luta. Ele era um humano diferente, filho de uma deusa. Em um homem que desempenhasse maximamente bem a sua função, os gregos antigos viam a ação dos deuses.

O vacilo de Aquiles ocorreu fora de uma luta corporal, em uma luta verbal com o general aqueu Agamenon. Agamenon precisou entregar Criseida, mulher pega por ele como despojo de guerra, para acalmar a vingança do pai dela, o sacerdote Crises, e do deus que o atendia, Apolo. Os gregos estavam morrendo com as setas do deus. O general, apontado por Aquiles como alguém que se esquivava das batalhas, era corajoso com as palavras. Seus comandados deviam compensá-lo por Criseida.

Aquiles revoltou-se contra o líder que não lutava, pegava as maiores recompensas para si, e retirava as dos comandados. Agamenon respondeu à insolência de Aquiles dizendo que pegaria Briseida, propriedade do herói. Aquiles encheu-se de ira e sacou a espada. Atenas o refreou. Aquiles anunciou que não mais se colocava à disposição dos aqueus. Eles morreriam, pelos troianos, e culpariam o líder. O herói retirou-se para a sua nau. Lá permaneceu sentado, por quase todos os capítulos da Ilíada, lembrando dos seus feitos e da honra abalada. Era um corpo quase todo parado, falando.

Ulisses de mil ardis desempenhava bem uma batalha verbal. Não era este o campo de batalha de Aquiles. A deusa Tétis, mãe dele, contou-lhe da vida breve que ele teria, destinada a acumular vitórias, mortes nas lutas, e a morrer em seguida. Esse acúmulo se deu muito rapidamente, conferiu fama a Aquiles. Mas faltava as últimas mortes, incluindo a do general troiano Heitor, o que levaria os aqueus à vitória e asseguraria a glória de Aquiles. A glória era a sobrevivência do mortal, alguém necessariamente de vida mais curta do que qualquer coisa espiritual. Aquiles morreria, mas seu corpo glorioso seria eternamente lembrado.

Quando Aquiles enfrentava alguém, a dureza da sua face prenunciava a glória vindoura. O rosto do Jaspion era mole, risonho. Gritava quando sentia dor ou escorregava de bunda no chão. A dureza era do robô. A firmeza é do robô. Dizemos que o Roberto Justus não vacila, só de olharmos para ele. Ele anima ou destrói os outros usando palavras e expressão facial. Amávamos Ayrton Senna por ele vencer e mesmo assim ter um sorriso tímido. Mas quando ele colocava o capacete sabíamos que a comunicação simpática estava interrompida. Ele iria fazer algo glorioso. Então voltaria, sem capacete, para nos olhar nos olhos e falar com voz mansa. Justus nunca parece vir à forma humana.

Jaspion realizava grandes coisas. A câmera o pegava em plano aberto. Depois, ele aparecia risonho, conversando com os outros. Nós valorizamos o herói. Não sabemos, contudo, se conseguiríamos ter os momentos de decisão e dureza dele. Para nos desinibirmos, desejamos ou a armadura de Hefesto ou a de um robô. Elas nos garantiriam um bom desempenho no que queremos fazer, e que não cairemos na desinibição bestial dos instintos. Nós queremos fazer coisas bem feitas, e aplicamos uma certa disciplina a nós mesmos. Mas não queremos deixar de sermos seres que têm dúvida a respeito do que deve ser feito, e se as inclinações da própria vontade são boas. Seres acostumados a olhar pela janela, para pensar sobre si mesmo e as coisas.

4 comentários:

  1. Mais um ótimo texto, de facil leitura e é claro que o meu super heroi favorito foi o gancho. Vou ler de novo pra ver seu entendo.

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    1. Oh, Marcelo, tomara que você entenda, para realmente poder dizer que é ótimo.

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