quinta-feira, 26 de maio de 2016

Pensando no macho


O estupro de uma moça por trinta rapazes é chocante (http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/05/jovem-que-teria-sido-vitima-de-estupro-coletivo-faz-exames-no-rio.html). O estupro de uma moça por um rapaz, ou uma outra moça, também seria chocante, caso não estivesse banalizado, e alguém mais, além da vítima, realmente se importasse com ele. Um estupro destes talvez pese mais para quem o cometeu do que para quem fica sabendo sobre ele.

É comum jogarmos a causa de um estupro para algo a que damos o nome de "machismo". Também é comum lançarmos esta causa para explicar o fato de uma mulher ganhar um salário menor do que um homem, para fazer o mesmo trabalho. Ou para explicarmos porque um taxista tem costume de ser desonesto, roubando no taxímetro, ao conduzir mulheres e não homens. Ou, ainda, para censurarmos o assovio de um homem para uma passante. Frequentemente nomeamos estas três situações de machismo.

Caso pensemos sobre esta palavra, logo perceberemos que é necessário distinguir entre o que um homem faz a uma mulher, por ela ser mulher, do que um homem faz a uma mulher independente de ela ser mulher. A cena em que a mulher recebe um salário menor do que o do homem pode, sim, dever-se à discriminação que o chefe de ambos faz à mulher, por ela ser mulher. A palavra "machismo", então, caberia aí.

A cena do taxista, contudo, podemos explicar pela desonestidade dele, e dispensarmos a possibilidade de ele preferir aplicar seus golpes em mulheres. Trata-se da escolha da vítima que o desonesto considera mais fácil de ser pega. Um velho também poderia ser tomada por vítima dele.

Ao assobiar para uma mulher, na terceira cena, o homem mostra, sim, uma discriminação que tem por alvo a mulher. Contudo, diferentemente do que ocorre na primeira cena, em que provavelmente o chefe considere a mulher, por ser mulher, uma funcionária pior do que o homem, a discriminação que baseou este assovio não tratou a mulher como menor do que o homem. O homem que assobiou mostrou o seu agrado, de forma grosseira, é verdade, pela mulher que passava. A este homem agradam as mulheres, e não outros homens, e o seu sinal é direcionado a elas. Podemos também chamar esta atitude de machista, embora ela não traga qualquer prejuízo à mulher que a recebeu.

Então, dentre os comportamentos dirigidos às mulheres pelo fato de elas serem mulheres, precisamos também distinguir aqueles que valem a pena serem mudados, por levarem a reduções de salários e violências, ou seja, a uma tentativa de piorar a vida de alguém, e os que não valem a pena ser mudados, pois não piora em nada a vida de alguém.

Podemos considerar que aquele caso de estupro, com os trinta rapazes, é uma violência dirigida à mulher, por ela ser mulher. Atribuiríamos-lo, então, à dominação que estes rapazes quiseram ter sobre a moça. Estaríamos falando de machismo. Porém, se o caso é de dominação, e não exatamente de excitação sexual, podemos considerar que o alvo poderia ter sido posto em um outro indivíduo, portador de outras características que não a de especificamente ser mulher, com quem convivem aqueles trinta rapazes, que pudesse ser considerado fraco ou passível de dominação. Entrariam, aí, o colega nerd, o colega gay, o colega gordo, o colega de classe média, e por aí vai. Estaríamos falando, então, não de uma ação especialmente dirigida às mulheres, mas de uma ação movida pelo ódio ao fraco.

Até agora nos perguntamos sobre as situações em que cabe ou não falarmos em machismo, baseando-nos no que podemos entender por ele. Nestas avaliações, estamos pensando no motivo que supomos para o agente da ação, que é o de ele discriminar mulheres, distinguindo-as do restante dos indivíduos com quem ele convive, para tomá-las por alvo.

Quem sabe o que se passa na cabeça do agente desta ação? No caso do taxista, supomos que o interesse pelo lucro seja a sua principal motivação, e não o de roubar exclusivamente mulheres. No caso do assobio e do salário diferente, podemos, sim, juntar à ação o fato de ser mulher o sujeito que a sofre: o chefe paga menos à mulher por ela ser mulher; o passante assobia para a mulher por ela ser mulher. Fazendo esta associação, podemos supor com mais segurança o motivo dessas ações. Um estuprador, um chefe filho da puta e um assobiador podem ser machistas, cada um à sua maneira.

As cenas que apresentei aqui tiveram por agentes passivos mulheres. Mas será que há necessidade de só se elencar mulheres dentre os alvos do machismo? Será que apenas elas sofrem o machismo? Para responder a essa pergunta, é útil focalizar melhor aquele a quem chamamos de machista, em busca da variedade do que ele faz. Olhando para o agente daquelas ações, encontraremos o macho, pois macho é aquele que pode ser machista. E por macho eu não quero dizer o homem, mas simplesmente aquele que pode ser machista (digo "pode ser machista", para que ninguém venha me dizer que há macho que não é machista).

O que caracteriza o macho que comete machismo é, como vimos nas cenas apresentadas aqui, o fato de ele discriminar as mulheres para alvo de suas ações, sejam elas boas (ou neutras, vá lá!) ou más. O que têm em comum o caso do estupro, a prática do chefe e o assobio, além do fato de terem sido dirigidos a mulheres? O fato de que procuraram diminuir as suas vítimas, dominá-las.

Bem, podemos apontar muitas outras situações em que uma pessoa, a quem bem podemos chamar de macho, tenta dominar uma outra pessoa: o machão de uma turma pode adorar dar cascudos do carinha de óculos; um grupo de trinta rapazes pode se aproveitar deste número para destruir uma banca de jornais ou fazer um arrastão; um grupo de cinco homens pode espancar até a morte um mendigo, acusando-o de pegar água sem pedir, em uma casa. Estes homens aproveitaram-se de sua força ou de seu número para humilhar ou dominar outras pessoas.

O machismo, então, não é algo que possa ser atribuído exclusivamente a cenas que tenham por vítimas mulheres. O macho age para dominar quem pode ser por ele dominado. Apesar de o discurso militante a favor de grupos minoritários puxar para eles todas as dores do mundo, o macho nem sempre tenta preferencialmente diminuir a mulher. Se lembrarmos do Totem em Tabu, de Freud, perceberemos que a questão é o combate que uma força abre a outras potenciais forças, como o pai primitivo expulsa da horda os machos que amadurecem sexualmente, zeloso por sua supremacia física e de fruição das fêmeas.

Quer dizer, a violência se exerce contra certos indivíduos, para que haja o domínio de um grupo inteiro. O macho considera que ninguém além dele pode usufruir de benefícios. Isto, sem dúvida, relaciona-se ao fato de uma horda selvagem ou uma comunidade de baixa renda não ter garantias de sobrevivência. E, por sobrevivência falo aqui mais da sobrevivência da vida digna, um resquício de biós, do que da sobrevivência da vida nua, vida do organismo, zoé.

Em Agambem, a modernidade define-se pela assunção do indivíduo da espécie humana como vida nua, zoé, destituída da glória que definia a vida dos antigos como biós. Resta, então, a preocupação com a dignidade como um arremedo de glória, tentando dar um outro sentido à vida que não ao fato de apenas de se estar respirando e nutrido (http://ghiraldelli.pro.br/agamben-e-sloterdijk/).

O desejo de poder que leva o macho a buscar dominar os demais é uma ação que ocorre onde há mais escassez de dignidade. O risco de não se valer nada é alto. O sistema de valorização e, consequentemente, de atribuição de poder a um indivíduo precisa ser simplificado. Mulheres, feios, magrelos e gordos, a diferença, enfim, torna-se insustentável.


P.s.: Ainda com Freud, em Totem e Tabu, podemos entender o motivo de o estupro com um ou dois agentes ativos não chamar tanto a atenção do restante da sociedade quanto o estupro com trinta algozes: o homem primitivo, participante de um clã fraternal, era sujeito aos tabus do incesto e da agressão ao totem. Ninguém poderia fazer estas coisas, sob pena de severa e imediata punição. Um membro do clã que os desobedecesse motivava todos os outros integrantes a se juntarem para linchá-lo até o matarem. Este era o único momento em que o homem primitivo podia exercer a agressão contra membros do seu clã, e o fazia junto de todos os demais. Ninguém podia ausentar-se do linchamento.

Nós vemos um estupro perpetrado por trinta indivíduos como um crime de massa. É como se todo um clã tivesse cometido um crime. Alguns cogitam não se tratar de um crime, mas do linchamento justiçatório à moda primitiva, em resposta a uma possível falta cometida por uma integrante do clã/grupo. Estes são os que atribuem a culpa deste estupro à mulher. Mas o restante da sociedade estranha este fato ocorrido no clã/grupo. Ao mesmo tempo em que nos reunimos para linchar os criminosos, temos a impressão de que o fato ocorrido naquele clã/grupo diz respeito a uma dinâmica interna dele, que o explica. Mas é impossível que se aceite esta falta e que um de nós deixe de fazer o possível para condenar os seus agentes. Com esta explicação, podemos dizer que o estupro cometido por um indivíduo não desperta esta dinâmica clã/grupo e sociedade, não chamando tanto a atenção geral.

5 comentários:

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  2. Thiago, já ouvi falar de inúmeros crimes bárbaros que acontecem nesse bairro de Santa Cruz que fica na periferia da cidade do Rio de Janeiro. De fato, o estupro é um ato de violência que pode ser usado com homens e não só com mulheres. Também acredito que não seja estranho haver estupro em atos de linchamento cometido por um grupo de homens. No entanto, a gente viu pelas informações dadas nesse caso que a vítima foi levada para essa casa com mais de 30 homens depois de ter ido se encontrar com seu namorado. Foi uma pessoa próxima que armou essa emboscada para a menina. Já fiquei sabendo de crimes tão bárbaros como esse acontecerem com jovens (independentemente de serem homens e mulheres) naquela região. Mas esse estupro coletivo aí nunca vi acontecer com uma vítima do sexo masculino e, tenho quase certeza, de que não vou ver isso se repetir com homens. Me parece apropriado sim dizer que esse é um exemplo de machismo.
    Obs.: Vocês fez bem em explorar outras situações que poderiam ser causadas pelo machismo mas que, na verdade, acontecem de maneira mais geral em que qualquer pessoa poderia ser vítima.

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    1. Luma, no texto eu não disse que um estupro assim pode ocorrer com homens. Falei sobre o estupro como uma busca por dominar o outro, e de como isso também se faz com indivíduos que não sejam mulheres. A partir disso, falei sobre o agente do machismo, o macho, ampliando o olhar sobre suas motivações.

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    2. É que eu estranhei você ter falado "aquele caso de estupro (ou seja, o estupro com 30 homens)" e dizer que o alvo poderia ser outro indivíduo: "Atribuiríamos-lo, então, à dominação que estes rapazes quiseram ter sobre a moça. Estaríamos falando de machismo. Porém, se o caso é de dominação, e não exatamente de excitação sexual, podemos considerar que o alvo poderia ter sido posto em um outro indivíduo, portador de outras características que não a de especificamente ser mulher. Entrariam, aí, o colega nerd, o colega gay, o colega gordo, o colega de classe média, e por aí vai. Estaríamos falando, então, não de uma ação especialmente dirigida às mulheres, mas de uma ação movida pelo ódio ao fraco." Pelo o que eu entendi a dominação do macho está presente tanto no caso do estupro quanto nos outros casos de violência contra aqueles que este macho considera fraco, não é? Acho que já desfiz esse mal entendido.

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    3. Ah, entendi sua observação. Eu falei que a violência coletiva, não o estupro coletivo, ocorre com outros indivíduos.

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