sexta-feira, 15 de abril de 2016

A loucura do amor




Eventualmente, em nossas vidas, amamos e somos amados. Experimentamos o amor. Mas como defini-lo? Poetas e escritores inspiram-se nele, e fazem belas obras. A pretensão de construir um discurso racional sobre o amor, contudo, parece ser mesmo uma pretensão, uma alta pretensão de alguns homens. O filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. afirma que, apesar disso, a filosofia insiste em investigar o amor. Mas esta investigação filosófica, pelo seu objeto, não poderia distanciar-se da poesia e da literatura. Platão deixou-nos as mais belas obras sobre o amor. Seus escritos oferecem tanto um discurso racional sobre ele, como imagens de rara beleza.

Ghiraldelli Jr. (2011) define as noções de eros e de philia, utilizadas pelos gregos antigos, e de ágape, definida pelo Apóstolo Paulo e utilizada a partir do alto cristianismo. Ágape era entendido como o amor de Deus para com os homens, e ensinado por Jesus. No livro Levítico, Javé transmite a Moisés a seguinte lei:

“Se alguém ferir o seu próximo, deverá ser feito para ele aquilo que ele fez para o outro: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente. A pessoa sofrerá o mesmo dano que tiver causado a outro.” (Levítico, 24:20)

Esta é uma ideia de justiça como reparação. Jesus significou o rompimento disto, com uma lei baseada no irmanamento de todos pelo amor de Deus. Recuando no tempo, até a civilização grega, temos philia e eros como manifestações do querer humano. Mas há diferenças entre um e outro. Philia implica num querer deliberado: “Eu quero ser amigo dele.”, “eu quero entrar para aquela turma, pois ela parece se divertir muito.” Trata-se de um querer da vontade, racional. Já eros é um querer do desejo. Este amor leva o mesmo nome do deus Eros.

Eros é filho da Carência com a Astúcia. Isto significa que falta-lhe algo a que ele sempre busca ter. E ele realiza esta busca lançando mão de estratégias, astúcia. O amor de desejo, o amor sentido pela alma possuída por Eros, se sobrepõe à razão. Este desejo é o de fundir-se com o outro, como no mito do andrógino, apresentado por Aristófanes no Banquete (2012), de Platão:

Diz Aristófanes que existia um ser esférico, possuidor de uma cabeça com um rosto masculino, de um lado, e um rosto feminino, de outro. Seus quatro braços e quatro pernas lhe conferiam grande agilidade e poder. Ele também era dotado de grande inteligência. Um dia, o andrógino resolve subir o Olimpo e desafiar os deuses. Zeus, furioso com esta insolência, parte o andrógino em duas metades. O lado em que cortou cada uma das metades foi suturado no umbigo. Desde então, cada metade vive desafortunada, sempre à procura da outra metade, sem descanso, sem paz.

“Cada um de nós não passa de uma metade que combina de um ser humano inteiro, uma vez que todos exibem, como o peixe chato, os vestígios de ter sido cortado em dois; e cada um se mantém à procura da metade que combina.” (Platão, O Banquete, p.54)

Este mito explica o fortíssimo desejo de união que há no amor Eros. Entre nós, o amor erótico ganha as feições do amor-paixão. É um amor com a característica da posse, do ciúmes. O amado precisa estar sempre próximo, se possível colado, e a própria ideia de perdê-lo causa sofrimento e exasperação no amante.

Sócrates (469-399 a.C.), mestre de Platão (427-347 a.C.), figura como personagem principal da maioria dos diálogos do discípulo. Um dos temas favoritos dele era o amor. Sócrates se dizia mestre na arte de amar.

No diálogo Fedro, Sócrates discursa sobre a alma do homem apaixonado, ou seja, a alma possuída pelo deus Eros. Estar apaixonado é bom ou mau? Lembre-se que o apaixonado superestima o seu amado, e promete-lhe coisas que, se o amor acabasse, não seriam cumpridas. Além disso, ao viver uma paixão, a pessoa acaba afastando-se da própria família e amigos, e obriga o seu amado a fazer o mesmo. Enciumado, o apaixonado é capaz de cenas constrangedoras, envergonhando o seu amado.

A possessividade, a avaliação errada que faz do amado, o afastamento das outras pessoas com quem tem relação e as cenas de ciúmes são demonstrações de que o apaixonado é desrazoável. Ele está louco, fora de si. A principio, Sócrates concorda com Fedro sobre a impossibilidade de se confiar em alguém que se encontre nesse estado. Mas logo Sócrates se dá conta de que Eros, sendo um deus, não pode ser mau. Ele, o filósofo, não quer ser pego falando mal de Eros, e acabar sendo punido por ele, não sendo mais agraciado com a dádiva do amor.

Outro aspecto da loucura por que passa o apaixonado é o distanciamento dele com relação ao que os outros normalmente vêem. Ou em relação ao que este mesmo homem pode ver quando não está louco. Por ser inspirada por um deus, esta loucura abre para o homem um tipo de conhecimento especial. Na Grécia antiga, consultava-se profetizas, mulheres em transe, para saber o destino de alguém ou de uma cidade. Hoje, vamos a médiuns e a outros religiosos nos consultar, e suspeitamos se eles não estiverem realmente enlouquecidos. Se é para encontrar alguém nas mesmas condições do que nós, vendo as mesmas coisas, qual a vantagem de consultá-lo?

“Os maiores benefícios nos são transmitidos através da loucura, quando são enviados como uma dádiva dos deuses. De fato, a profetiza em Delfos e as sacerdotisas em Dodona, quando fora do seu juízo, concederam grande número de benefícios esplêndidos à Grécia, tanto na esfera dos assuntos privados quanto naquela dos negócios públicos, mas pouco ou nada conferiram em benefício quando se encontraram em seu juízo perfeito.” (p.45)

Certo dia, você encontra na rua um homem lindo. Você está atrás dele, na fila do supermercado. Gentilmente, ele cede a vez para você. Você agradece e passa à frente. Ele mantém-se reservado. Você comenta o absurdo do preço da carne. Ele responde, e você percebe a inteligência dele. Um calor sobe por dentro do seu corpo, e também uma vontade de que aquela conversa dure pra sempre.

Platão diria que a beleza deste homem entrou pelos seus olhos e inundou a sua alma. O seu novo amado te fez recordar de um querido professor, ou do seu primeiro namorado, ou de um príncipe da Disney. Ele tem as características que você admira. Mas você também tem vontade não de admirar, e sim de lançar-se no pescoço do seu amado.

Para Platão, a alma do apaixonado é como uma parelha de cavalos com um condutor. Um dos cavalos é negro, e é o cavalo da impetuosidade. Ele é o responsável por o apaixonado ser “meio atirado”. Esse cavalo anseia ardentemente por desfrutar da beleza física do seu amado. O outro cavalo, porém, diferentemente, ajoelha-se diante do amado, admirando-o respeitosamente. Esse é aquele lado do apaixonado que devaneia sobre o objeto do seu amor, ao olhar para as nuvens ou para o rosto dele. O condutor puxa o cavalo negro com força, obrigando-o a sentar-se.

“Quando o auriga vê esse rosto (do amado), sua memória é conduzida de volta à verdadeira natureza do belo e ele a vê colocada sobre um pedestal sagrado junto ao autocontrole; a essa visão, ele se amedronta e recua intimidado, e ao recuar se vê obrigado a puxar as rédeas tão violentamente para trás a ponto de fazer os dois cavalos se apoiarem sobre suas ancas, um deles o fazendo voluntariamente sem esboçar qualquer resistência, enquanto o outro animal, insolente, o faz de maneira inteiramente involuntária.” (p, 67)

A parte racional da alma do apaixonado tenta controlar sua parte impulsiva. Toda pessoa apaixonada sente uma louca vontade de estar com o amado, mas tem medo de parecer insistente. Não quer parecer uma pessoa que não consegue se controlar. Este controle é difícil, contudo, ao não iniciado na filosofia, àquele que desconhece o que aquele belo homem causou com a sua alma, não sabendo lidar com os próprios arroubos apaixonados. O filósofo é portador de uma alma que um dia passeou por entre as coisas divinas, entre elas a Beleza. Quando o filósofo vê alguém belo, reconhece essa Beleza. O filósofo é aquele que aprendeu a arte de amar no amor ao saber e aos rapazes.

“Bem, aquele que não foi recentemente iniciado, ou que foi corrompido, não ascende rapidamente daqui a uma visão da beleza ela mesma quando vê seu homônimo aqui. O resultado é não reverenciá-la quando a contempla, passando a ceder ao prazer e como um animal de quatro patas devotar-se à luxúria e à geração de filhos; faz da licenciosidade sua companheira e não teme nem se envergonha de buscar o prazer que viola a natureza. Aquele, entretanto, que foi recentemente iniciado, alguém que contemplou muitas de tais realidades, ao ver um rosto de semelhança divina ou uma forma corpórea que constitui uma boa imagem da beleza, principia por estremecer, algo como o velho pavor que sentia antes dele se apoderando; então, à medida que contempla, passa a reverenciar aquele que é belo como um deus, e se não recear ser julgado completamente louco, oferece sacrifícios ao favorito como se o fizesse a um ídolo ou a um deus. E enquanto o contempla, uma reação ao seu [anterior] estremecimento dele se apossa, acompanhada de suor e um calor incomum, pois à medida que o fluxo da beleza o penetra através de seus olhos, ele é aquecido e esse fluxo irriga a semente das penas de suas asas, ao passo que, ao tornar-se aquecido, as partes das quais se desenvolvem as penas, que antes eram rígidas e obstruídas, e que barravam o brotamento das penas, se tornam macias, e à medida que a nutrição circula por ele, os cálamos das penas se intumescem e principiam a se desenvolver a partir das raízes sobre toda a forma da alma, pois esta era outrora toda emplumada.

Ora, a alma inteira durante esse processo pulsa e palpita. Tal como na primeira dentição as gengivas doem e coçam, é exatamente o que experimenta a alma quando as plumas de suas asas começam a crescer; à medida que estas começam a crescer, ela se mantém febril, incomodada e experimenta cócegas. Quando, contudo, contempla a beleza do jovenzinho e capta a corrente de partículas que para ela fluem a partir da beleza dele, razão pela qual isso é chamado de desejo apaixonado, ela é irrigada e aquecida, aliviada de sua dor, que é substituída por alegria; mas quando ela se acha sozinha e torna-se seca, as aberturas das passagens nas quais as penas se desenvolvem são obstruídas pela secura e impedem a germinação das asas; os brotos no interior, encerrados com seu desejo, pulsam como artérias, cada broto aguilhoando a passagem em que se encontra, resultando que toda a alma é aguilhoada em todas as suas partes, o sofrimento a pondo em fúria. E, então, novamente, recordando-se do belo, ela se regozija. Assim, devido à mescla bizarra dessas duas sensações, ela é bastante transtornada por conta de sua estranha condição. Está confusa e enlouquecida, e na sua loucura não consegue dormir à noite ou permanecer estável em qualquer lugar durante o dia; tomada de saudade, ela se apressa rumo a todo lugar onde espera ver o belo. E quando o vê se banha mediante as águas do desejo apaixonado, as passagens que estavam bloqueadas são abertas, a alma libera-se do aguilhoamento, experimenta o cessar de sua dor e frui do mais doce dos prazeres do momento” (Platão. p.60, 61 e 62)

Distante do amado, a alma do apaixonado enlouquece de dor. A pessoa fica irritada, mal-humorada e sem descanso. Só a presença do amado alivia a alma das terríveis dores que está sofrendo, faz o apaixonado voltar a sorrir. Quando está perto do amado, o não-filósofo, porém, não controla o seu desejo, e procura usufruir intensamente da beleza física do seu amado. O filósofo, diferentemente, consegue conter este desejo e dosar o prazer com o curtir a beleza do amado, que o faz lembrar-se do Belo. O amante filósofo, ao ver o corpo daquele a quem ama, vê além desse corpo, porque ele vê além do que os olhos do seu próprio corpo vêem. Quando está apaixonado por alguém belo, o filósofo pode vislumbrar as coisas do Bem, como o Belo, o Justo, o Corajoso, etc.

O não-apaixonado é sensato. Equilibrado, ele perde o emprego já pensando em que lugar tentará trabalhar. O apaixonado por um trabalho se desespera, se for demitido. Sente-se injustiçado e lutará até provar que está certo. O sensato está num mundo em que o emprego, assim como a paixão acabam, mesmo. O apaixonado não acredita que as coisas que ele ama possam acabar. O amor é o meio privilegiado por onde o homem, mortal, pode tocar o eterno.

Se você já se apaixonou, ou está apaixonado, você sabe que, nesta condição, não se vê nada além da própria paixão. Isso é ver pouco? O apaixonado está numa especial condição para aprender a filosofia. Sendo filósofo, ele usufrui do prazer físico sem, contudo, se perder nisso, pois ele quer o desenvolvimento da parte intelectual da própria alma. E também quer isto para o seu amado.

O amante quer que o seu amado, além de belo, também cultive a parte nobre da alma dele. Ele se decepcionaria se o bonitão fosse só um bonitão, não usasse a própria beleza, quando ela atrai um amante-filósofo, para desenvolver sua intelectualidade e outras características nobres de sua alma. O apaixonado-filósofo e seu amado, conjuntamente, vão conhecendo as próprias almas, e podendo, então, cuidar delas.

O que fazer com a própria vida? Em que se tem mais aptidão para trabalhar? Como motivar-se para seguir este plano? Como usufruir da arte e das coisas belas, sentindo prazer e conferindo sentido à própria vida? Essas perguntas o amante-filósofo e seu amado fazem a si mesmos, e conseguem responder. Eles conhecem o que sabem, o que desejam e o que devem fazer em suas vidas, e estão com a alma suficientemente animada para buscarem essas coisas.


Referência

Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Editora Paulus. São Paulo, 1990.
Ghiraldelli Jr., Paulo. Como a filosofia pode explicar o amor. Universo dos Livros, São Paulo, 2011.
Platão. Banquete. Edipro. São Paulo, 2012.
Platão. Fedro. Edipro. São Paulo, 2012.

2 comentários:

  1. O mundo das essências é o verdadeiro mundo?
    Só o filósofo consegue verdadeiramente usufruir da paixão sem se inebriar com as delícias do desejo é do prazer?
    Bom texto.Bastante reflexivo, embora eu não seja filósofa.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ana, para Platão, o mundo das formas é mais real do que o sensível. Conhecê-lo é ter um saber verdadeiro.
      E o filósofo curte o prazer, mas se auto-governa.

      Obrigado!

      Excluir