domingo, 3 de abril de 2016

O que é importante para o homem?


Agostinho habitou, por um tempo, com seus discípulos e amigos Alípio e Nebrídio. Após ocupar um cargo de juiz, e de ter sido assessor, pela terceira, vez, de um senador romano, Alípio começava a buscar clientes. Agostinho possuía alunos, a quem ensinava a arte da retórica. Nas horas livres, ia à igreja. Nebrídio também era professor, mas procurava manter o próprio espírito, o quanto possível, livre e desocupado para investigar a Sabedoria.

Um dia, com Nebrídio ausente, recebem a visita do amigo Ponticiano, africano como eles. Ao entrar na casa, Ponticiano reparou em um códice que estava sobre a mesa. Pegou-o, abriu-o e encontrou as epístolas do Apóstolo São Paulo. Ponticiano sorriu para Agostinho, imaginando que aquele era um dos livros aos quais ele se debruçava nos estudos. Agostinho declarou ao fiel cristão que todo o seu cuidado ia para aquela bíblia.

Ponticiano começou a contar de quando ele e três amigos saíram a passear pelos jardins que acompanhavam as muralhas da cidade de Tréveris (da Alemanha). Iam em duplas, e a dupla em que Ponticiano não estava encontrou uma cabana. Lá também havia um códice, ao qual um dos amigos de Ponticiano tomou e começou a ler sobre Antão, um grande monge egípcio. A leitura provocou nele uma profunda admiração, vontade de abraçar a vida que tivera aquele homem.

Ele e o amigo eram agentes dos negócios do imperador. O leitor, "cheio de santo amor e salutar confusão, irado consigo mesmo" (Santo Agostinho. Confissões, p.192), perguntou ao amigo aonde pretendiam chegar com todo o trabalho, toda a militância deles. A defesa do imperador valia os perigos e a incerteza por que passavam? Se ele quisesse ser amigo de Deus, poderia sê-lo imediatamente! Agitado, o leitor voltou-se novamente ao livro que o transformava interiormente, em uma gestação de vida nova que só Deus podia ver. Seu pensamento saíra deste mundo. Disse ao amigo que, nesta hora e lugar, decidia pôr-se a serviço de Deus. Se o amigo não pudesse imitá-lo, que não se lhe opusesse.

Ambos deixaram tudo o que possuíam para seguir a Deus. Ponticiano e o amigo que com ele estava finalmente encontraram estes dois. Deles ouviram suas novas resoluções e como elas haviam se realizado. Ponticiano e o amigo comoveram-se e felicitaram-os. Encomendaram-lhes orações para os seus nomes. Os recém-convertidos, "fixando o seu coração no céu, ficaram na cabana" (Confissões, p.193). As noivas de ambos tomaram conhecimento destas resoluções, e a eles consagraram suas virgindades.

Ao ouvir esta história, Agostinho sentiu-se como se tivesse sido virado para si mesmo: enxergava agora aquele a quem não via. O livro veicula uma mensagem de um desconhecido, que a lança para que o acaso cuide de lhe dar leitores e amigos. É o que Sloterdijk conta, em Regras Para o Parque Humano. Se mantivermos o espírito da história contada por Ponticiano, diremos ter se tratado não de acaso, mas de providência divina.

A humanitas romana era um ideal de educação integral, sendo tanto transmissão de saberes quanto formação de virtudes. Enquanto os espetáculos de sangue atraíam e escravizavam multidões, a escola pesava a balança na inibição dos impulsos bestiais do homem. Entre nós, o humanismo vai inspirar uma educação que equilibra a inibição e a desinibição destes impulsos.

Agostinho, imerso na cultura romana, passou um longo tempo se sentindo aquém dos livros sagrados a que amava ler. Apesar de amar a Deus, sentia ele que a Verdade lhe escapava, e identificava que isso se devia ao fato de ele não conseguir se desvencilhar das atrações do mundo. Não tanto as riquezas e glórias o prendiam, mas o desejo por mulheres.

Agostinho demorou para conseguir ser amigo dos autores daqueles textos, sentir aquela Verdade junto com eles. Para ele, isto implicava em uma vida de renúncia aos prazeres do mundo, ao que os seus sentidos lhe proporcionavam. Entre nós se espera um homem que possa ser um estudante, que passe um período de leituras e reflexões com outros, mas que não deixe de agir. Espera-se dele tanto inibição quando desinibição.

Consideramos sumamente importante que o indivíduo se engaje nas atividades que socialmente lhe são oferecidas. Na verdade, o engajamento e a fuga da reflexão vêm sendo imperativos. Sloterdijk nos pergunta onde buscaremos parâmetros para dirigir as ações que empreendemos para nos auto-construir, se Deus se escusou deste trabalho e se largamos as mensagens dos sábios do passado, constantes nos livros, em porões (http://ghiraldelli.pro.br/clareira-de-peter-sloterdijk/). E, aproveitando o Heidegger de Sloterdijk, pergunto o que guardaremos, se estamos indo rápido demais para sermos sensíveis aos delicados sussurros do ser? Como cuidaremos do que é importante ao homem, não como uma possessão dele, mas como o ser para o qual ele existe, se nem sabemos do que se trata?

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