segunda-feira, 18 de abril de 2016

O homem e sua soberba


A alma do homem rejuvenesce em Deus. Recobra as suas forças. Quando escreve suas Confissões, Agostinho convoca a própria alma a confessar as misericórdias recebidas, para louvar a Deus. Os homens revoltados e maus fogem de confessar seus pecados a Deus. Esta é uma fuga do próprio rosto. Na verdade, eles estão fugindo daquele que os olha no rosto. “Fugiram para não vos verem a Vós que os estais vendo!” (p.106)

Entretanto, Deus não abandona nada do que criou. Aqueles homens divagaram para longe de Deus, mas conseguiram ficar longe de tudo, menos de Deus. Deus está no coração dos perdidos que agora choram, confessam. Choram e são consolados. Choro que é um gozo, então.

Agostinho também se apartava de si mesmo, e então se desencontrava tanto de si quanto de Deus. Mas era impossível ficar longe Dele, mesmo fugindo de tudo. Deus está em cada lugar, acompanhando o homem, querendo que ele olhe para a própria face.

É bem-aventurado o homem que conhece as coisas que Deus criou, mas não por causa delas mesmas, e sim por quem as criou. Conhecê-las é glorificar a Deus. O homem simples, que conhece a árvore a partir do seu uso, agradecendo por isto, é melhor do que o homem que a visita uma vez, para medi-la, mas que não come o seu fruto, não aproveita a sua sombra, não conversa com quem usufrui dela, não a guarda na memória, não sabe quem a pôs ali.

O homem utiliza a razão para contar as estrelas do céu, os grãos de areia do mar. Constrói teorias sobre os segredos da vida, e delas se orgulha. O homem simples, desconhecedor dessas teorias, permanece estupefato com os segredos do mundo. Orgulha-se de Deus, não de si mesmo.

Soberbo, o homem afasta-se da Luz divina. Apesar de também se dedicar a coisas grandes, como os eclipses, não encontra Deus. Não percebe que o objeto sobre o qual aplica sua razão é uma criação de Deus. E também não percebe que a própria razão, que pensa ser sua, é um talento doado por Ele.

O Verbo fez as coisas que são numeráveis, e os sentidos com que se as percebem e a mente com que se as numeram. A Sabedoria de Deus, ao contrário, é inumerável.

Jesus foi feito para ser como um dos homens, para que os homens o considerassem um caminho para Deus. Era um meio para o homem soberbo poder descer do próprio salto, descer de si mesmo e dirigir-se a Ele. O homem deveria ter compreendido a origem da sua magnífica razão, e tê-la entregue ao Criador para que ele fizesse sua conservação. Isso teria livrado a sua razão de todo o lixo acumulado, que a turva, como os pensamentos altivos, as curiosidades e as luxúrias. Mas, não obstante, ele julgou-se alto e cintilante como as estrelas. Atribuiu como proveniente de si mesmo a razão recebida de Deus. Em retorno, atribuiu a Ele as falsidades próprias do homem, transformando “a glória de um Deus incorrupto na imagem e semelhança do homem corruptível” (p.108).

Próximo aos 30 anos, Agostinho lecionava retórica em Tagaste, no norte da África. Incomodava-o profundamente o comportamentos dos estudantes, que invadiam as salas em que estivessem ocorrendo aulas. Esta falta de disciplina e destempero indignava Agostinho. Segundo ele, Deus impelia-o a mudar-se para Roma, para que sua alma fosse salva. Mas a forma como ocorreria este salvamento, o real motivo da mudança de Agostinho, apenas Deus sabia.

A mãe agarrou-o, chorando amargamente a sua partida. Num momento em que a mãe recolheu-se para chorar e orar, Agostinho partiu, confiante na realização do motivo profundo de Deus. Deus ouvia o objeto principal dos desejos daquela mãe - a salvação do filho -, não atendendo ao pedido pela permanência dele. Os homens desconhecem as alegrias que a eles são reservadas por aquele que preordena o acontecimento de todas as coisas.

Em Roma, Agostinho travou relações com filósofos maniqueístas. Permaneceu, portanto, inapto a abrir-se a Deus. Segundo diz, parecia-lhe que este pecado não era cometido por ele, mas por uma outra natureza, desconhecida, estabelecida nele mesmo. Ele não confessava a culpa, pois a culpa recaía sobre outra coisa que, embora estivesse com ele, não era ele.

Esta é a divisão do homem ímpio em relação a si próprio. E a sua soberba, com ele se colocando acima da responsabilidade pelo que faz. Agostinho, jovem, procurava fazer com que Deus fosse derrotado no próprio interior, ao invés de ser vencido por Ele, para ser salvo. O pecado da soberba é cometido pelo homem que se considera maior do que de fato é.

Seu espírito queria voltar à fé católica, mas a ignorância o impedia. Agostinho não admitia que pudesse existir alguma coisa que não fosse material. Ele formava, portanto, uma ideia de Deus dotado de um corpo. Para ele também havia uma susbtância do mal, feita com massa feia e disforme, grosseira como a terra, ou tênue como o ar.

Agostinho cria, contudo, que Deus não criou nenhuma natureza má. Então havia duas substâncias opostas entre si: a do bem, mais extensa, e a do mal, mais diminuta. Supunha, também, que Cristo proviesse da substancia do corpo de Deus. Para que ele nascesse, fora necessário que a carne de Deus houvesse se juntado à da Virgem, manchando-a.

Agostinho ignorava o que era Deus, e que o governo das coisas humana pertence a Ele. Mas jamais deixou de crer na existência Dele. A razão, que de outro modo é transparente e apta a alcançar a Verdade, em Agostinho estava comprometida. Os livros santos faziam-se, por isso, necessários a ele, com a sua autoridade. Como Agostinho poderia crer que seus pais eram aqueles que assim se declaravam? Justamente deste modo, pela declaração. Se ele não cresse no que ouvia, não saberia.

Os livros santos abrem-se a todos, acolhendo os sinceros de coração. Por meio deles, Deus dispõe as almas a considerarem os muitos fatos em que devem crer sem presenciar, sem ver. Deus está em toda parte, escondido e presente. Ele é constante, assim como sua Verdade, e ambos só podem ser alcançados por meio da inteligencia purificada.

Na doutrina católica, não se entende que Deus, infinito, esteja circunscrito ao espaço, finito. Ele, portanto, não pode encerrar-se num corpo, como o homem. Essas dúvidas ocupavam Agostinho, tendo ele abandonado a doutrina maniqueista mas ainda não abraçado totalmente a fé católica. Sua mãe veio visitá-lo, e felicitou-se pelo primeiro fato, mas inquietou-se pelo segundo. Ela intensificou suas súplicas a Deus.

Agostinho aspirava a honras, riquezas e a casar, mas vinha encontrando dificuldades em tê-los. Nas Confissões, ele entende estas dificuldades como um benefício de Deus. Quanto mais fosse penosa e difícil a busca por estas coisas, mais se demonstrava que Deus não as consentia a Agostinho. “Picáveis a parte mais sensível da ferida, para que, deixando tudo, voltasse para Vós, que estais acima de todas as coisas” (p.135).

Certo dia, Agostinho se apresentaria ao imperador, em Milão. Devia proferir louvores que, na sua boca, eram mentirosos. A agitação no seu coração o atormentava. Neste mesmo dia, andando na rua, viu um mendigo bêbado e alegre. Os falsos louvores, as honras, a riqueza, o casamento, pra que serviam? Para se chegar à alegria que aquele mendigo alcançou com algumas esmolas. Isto se realmente aquelas coisas o fizessem chegar a ela. Sem falar que esta era uma felicidade temporal, ou seja, não eterna.

A alegria do bêbado não era verdadeira, tampouco a que Agostinho poderia alcançar com os bens que almejava. Naquele momento, Agostinho só queria viver menos inquieto, mas também não exatamente ser alegre como um bêbado.


P.s.: Este é um estudo do livro "Confissões", de Santo Agostinho, compreendendo o intervalo entre as páginas 105 e 140.

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