sábado, 23 de abril de 2016

Obedecer à própria experiência


Em Deuteronômio, Moisés relembra ao povo de Israel todo o percurso deles, a partir do Egito. Moisés quer demonstrar o quanto Javé se fez presente neste percurso. Javé não limitou-se a inscrever os dez mandamentos. A todo momento em que foi necessário, ou sentia privação de algo, no deserto, ou quando deveria atravessar uma cidade populosa e mais forte, Moisés pôde consultar Javé. Com a escravidão daquele povo, no Egito, Javé compadeceu-se.

Em Totem e Tabu, Freud conta sobre os antigos clãs fraternos, organizados em torno dos tabus do incesto e do assassinato do animal totêmico. Estes grupos elegiam uma figura animal ou humana como totem, o protetor místico deles. Em troca, o grupo deveria protegê-lo e obedecer aos tabus. A punição era uma certeza para o violador dos tabus, que sabia que ela viria pouquíssimo tempo após a violação.

No desenvolvimento da humanidade, este costume de obedecer a um totem deu lugar ao de obedecer a deuses. Os deuses têm uma mitologia, uma explicação da sua origem, do porque de serem adorados e do que eles exigem dos homens. Os egípcios divinizaram animais. Os mesopotâmios divinizaram astros. Estes elementos representavam, aos povos que os elegiam como divinos, os benefícios que eles queriam receber no clima, nas plantações, nos confrontos, etc, ou os malefícios que queriam evitar.

Freud explica que o elemento divino é intocável para o homem, por ser portador de uma misteriosa energia que mata quem dele se aproxima. Javé fazia o mesmo com quem se aproximasse da sua tenda, excetuando Moisés. No entanto, Ele se afirmou um Deus presente, que fala às pessoas. Como exemplo disso, Javé lembrou de como forçou o Faraó a libertar o povo, e de como conduziu-os pelo deserto, na forma de uma nuvem, de dia, e de uma coluna de fogo, à noite. Além disso, Javé transmitiu a Moisés todas as regras de convivência social que, se obedecidas, garantiriam com o que o povo não restabeleceria uma situação de escravidão. Também transmitiu todos os rituais de adoração e de sacrifício para expiação de culpas, mostrando como o povo deveria comportar-se diante do Deus.

Moisés diz que Javé é um Deus ciumento, que proíbe que o homem tome qualquer objeto para adoração, mesmo achando que estão adorando a Deus. A explicação disso é que, para Javé, o homem que adora um objeto age como se fosse autossuficiente, pois considera a si mesmo como tendo o poder de fazer um objeto divinizado. Javé diz que este homem está distante dele, que é o Deus presente.

De Javé não se pode criar uma representação porque ele não pode ser apreendido num rosto. Ele é presença, cuja face se vê nas coisas que ele fez. Ao homem que foi escravizado no Egito, Javé proporcionou a experiencia da libertação. A ele foi prometido que alcançaria uma doce terra, para ele e as gerações dele. Javé conduziu os homens pelo deserto, e quis que eles se mantivessem no interior dos seus mandamentos, como numa esfera mantida pela ideia de que estão protegidos no presente, e que terão uma recompensa no futuro.

Peter Sloterdijk explica que cada um de nós vive em uma esfera, um circulo de aconchego e proteção contra o externo. Esta esfera é formada pelas trocas cinestésicas e sonoras travadas entre alguns elementos, sendo que um destes elementos será constituído como um eu, o eu que consideramos nós mesmos. A primeira relação que temos após a saída do útero da nossa mãe, antes mesmo de sermos um eu, é com uma voz interna reconfortante e aconselhadora. Os gregos antigos a chamavam de daimon, que para nós pode ser um gênio ou um anjo.

A Edição Pastoral (1990) da Bíblia, no Deuteronômio, tem a seguinte nota de rodapé: "Javé é o único Deus. Portanto, a vida do homem também deve ser única, expressando uma resposta de adoração ao único Deus. Tal resposta é um amor total, que penetra e informa a consciência (coração), o ser (alma) e a ação (força). Esse amor total deve ser interiorizado, tornando-se a base da consciência (coração)" (Deuteronomio, 6:4). A ação é o que os membros do homem fazem. O ser é o que o homem entende por suas características próprias. A consciência é o que o homem pensa. Ama-se a Deus com este todo. É pelo coração, contudo, que o homem escuta a Javé.

Santo Agostinho falará sobre os homens que não escutam o Deus nos seus corações, atentando-se apenas para o chamado das coisas fugazes deste mundo, que ele acha que existem para satisfazê-lo. Essa autossuficiência afasta o homem de Deus. A identificação com o perecível faz o homem perecer. Já escutar a Deus, no coração, e amá-lo faz com que o homem tenha uma vida única, ou seja, não seja corruptível como tudo o mais no mundo.

Deus conheceu o homem escravizado, libertou-o, prometeu-lhe benesses e cumpriu. Deus é presente como experiência histórica. O que Ele solicita ao homem é que este atente-se para a sua própria experiencia, através da consciência.

A obediência ao totem era desprovida de consciência: era como se o pai primitivo estivesse fisicamente presente para punir os membros da sua tribo. As mitologias de deuses permitem que se simbolize as leis, ou seja, que se tome distância física do legislador e da sua punição, e que se os mantenha como elementos da consciência.

O deus único Javé, apresentado no Pentateuco, solicita ao homem que ele tenha consciência da própria experiência, que ele atente-se para algo que ocorre com ele mesmo. Ainda não se trata de uma experiência de si mesmo. É uma experiência de Deus, e que leva o homem à vida única, no sentido de além do mundo, além do corruptível.

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