quarta-feira, 18 de junho de 2014

Contabilidade

Demorei entre quatro e cinco meses para ler Ilíada. Não peguei outro livro durante esse tempo. Eu pegava o metrô às 6:20 e lia entre 14 e 18 páginas, até às 7:00, quando desembarcava. De segunda a sexta. No restante do dia, eu ia pensando no que acontecia na história. Um porção de detalhes eu esquecia. Muitas vezes não consegui raciocinar, criar uma razão, para um acontecimento, e ficava sentindo o impacto, perguntando-me o por quê de aquilo ter acontecido. Hoje, quando escrevo, surgem cenas, que se dão a serem contadas por mim. Elas vêm para me fazer pensar em novos aspectos sobre o que escrevo. Eu digo que Ilíada é um texto infinito. Falarei, aqui, sobre o tomar um livro como igual a outro livro, e igual a todos, feito por alguém que quer ler o máximo possível de livros e contar sobre eles. Não, contar sobre a quantidade deles. Um livro termina, alguém se diz leitor, mas isso dura pouco e outro livro precisa ser terminado logo, para que se possa ser novamente leitor. Há, no Youtube, canais de vídeos (um deles: http://m.youtube.com/?hl=pt&gl=BR#/user/patriciapirota) em que as pessoas relacionam as leituras que fizeram ao longo daquele mês. Há um vídeo por mês, contabilizando os livros lidos (também há outros, mas os de contabilidade são mensais). Há uma contabilização dos vídeos feitos, da audiência e dos comentários. Cada vídeo é alguém dizendo o que leu, sendo sujeito calcando-se em seus feitos, mas em torno de objetos que valem a mesma coisa, simplesmente passam. O heroísmo de ler Ilíada duraria só uma exibição. Para a próxima, outro feito deverá ser exibido. Falam sobre o que trata cada livro. Sua história, o personagem que gostariam de ser, os personagem sem graça, que não dão vontade de ser como eles. Falam as idéias que tiveram com o livro, e que a coisas da vida são mesmo daquele jeito. Esse objeto, livro, que inclui capa e arte interna, será olhado de um jeito. Há um olhar para cada livro, e esse olhar, as sensações que teve, são o principal ponto do contador. É um olhar que será deixado de lado tão logo termine o vídeo. Mais uma sensação foi contabilizada. É um olhar que não pode ter consciência, um relembrar para pensar de novo, sobre si mesmo. Não tem conceitos, uma teoria que se adquire para ler o mundo. Ou tem, mas o conceito é trocado junto com o olhar. Óculos não se transformam a si mesmos, e são jogados fora quando se adquire novos olhos. Para entenderem algo, uma definição breve é o suficiente. Têm capacidade de alojarem e desalojarem o pensamento rapidamente, pois o pensamento não deixa de ser o do olho. Pegam os livros do momento, os que pulam nas livrarias, debaixo do braço dos estudantes, viram filme, são comentados na internet, etc. Se lêem um livro antigo, é para buscarem definições para entender o livro novo. Há os que perduram mais, num olhar, dizendo-se fãs de uma determinada série de livros (de um livro, jamais. Para que se demorem num título, que haja uma quantidade, ali). Não se trata de uma identidade como a do jovem gay, que escuta cantoras e vai adotando expressões corporais. Aquelas expressões viram um repertório do ser gay dele mesmo. E não se trata de ser de direita ou de esquerda, de uma área do conhecimento: as aspirações, os líderes políticos e os teóricos são todos iguais, na contabilização. O gay, o hetero, o comunista, o fascista, o filósofo são sabidos e deixados de lado, trocados por números, igualados. Uma doutrina é uma permanência indesejada do olhar. O ser alguma coisa, exercitar o próprio corpo para ter uma característica, fazer deterninado tipo de coisa, é demorado e indesejado. Lêem qualquer livro, mexem em câmeras e programas de computador, auxiliados por definições e guias rápidos. São capazes de fazer tudo, sem se dizerem fotografos ou filmmakers. Há muitos jovens tirando fotos e fimando, hoje. O fotógrafo é valorizado. Sobre a cidade moderna já se falou que foi feita para os olhos. Ela é rápida, em seus fluxos e acontecimentos, e o olhar precisa captá-la num flash. O momento é o momento meu de fotografar. Ele passa e eu passo rápido. Não há tempo para pensar em como se opera uma câmera. E não se é um cameraman, apenas se esteve pronto para agir naquele momento. Um tipo de saber ligeiro, e algum equipamento, são o suficientes. Nas manifestações, tem gente de skate no pé, câmera na mão e máscara anti-gás no rosto. Em um daqueles vídeos (http://m.youtube.com/?hl=pt&gl=BR#/watch?v=57346n7iw8I) a apresentadora fala que tal livro é de leitura envolvente. Ela se corrigiu, dizendo que envolvente quem diz é a Veja. A leitura é cativante. Não, também não. A Readers Digest falam assim. A leitura é gostosa. A apresentadora pareceu incomodada com a palavra, mas faltou-lhe outra. Se algo me causa uma sensação gostosa, chamo-o de gostoso ou gostosa. Hoje ninguém pode ser gostosa. Mulheres e homens manifestam-se contra a "objetificação do corpo". Dizem que o seu corpo lhes pertence. Então que ninguém diga o que meu corpo é, se o vêem ou o sentem, pois preciso ser livre para contabilizar quantos cartazes levantei, em quantos protestos fui, quantas vezes fui manifestante. Quero ser objeto de mim mesmo, e esse mim mesmo é algo momentâneo.

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