sábado, 28 de junho de 2014

O amante

Em uma turma de faculdade, as pessoas comentam que o João gosta da Maria. E que Maria não o corresponde. Mais do que isso não falam. Os amigos mais chegados de um e de outro são os que sabem mais detalhes, e consolam Carlos, quando ele está triste; às vezes dizem-no para desistir, ou simplesmente divertem-no, para que ele largue um pouco daquilo. As amigas da Maria incentivam-na a dar uma chance para Carlos, ou dizem que ele não é mesmo lá muito legal para ela. O caso desenvolve-se no interior das relações mais íntimas que cada um tem, mas oferece feição pública que diz "Carlos gosta da Maria". Na mesma turma, diz-se que o João atira para todos os lados, a cada hora mostra interesse por uma menina. No riso dos colegas há uma reprovação do comportamento frívolo de João. Foi assunto do grupo a falta de profundidade nos sentimentos dele, ou a sua confusão. Para que um homem possa tornar público um sentimento, sem ser censurado, que ele pareça saber o que quer e não pareça fugir ao controle de si mesmo. Um colega que agisse movido antes pelas emoções do ciúmes do que pela razão também viraria assunto. O diálogo Fedro, de Platão, ajuda-nos a falar algo mais sobre essas situações. Como uma pessoa passa a amar a outra? Uma pessoa vê coisas bonitas na outra. Vê beleza em seu rosto, corpo, gestos. Segundo Platão, essas sensações fazem-nos lembrar, sem que tenhamos consciência disso, do Belo absoluto, com quem nossa alma uma vez se encontrou. O candidato a amante procura conversar com o belo. Como este reage, e o que ele fala, ou assegura de que ali está um exemplar do Belo, e em relação ao qual só se pode ter amor, ou mostra que houve um engano e não há tal característica ali. A pessoa que faz pouco caso do interesse da outra mostra-se feia, até. Ainda assim, neste caso, o candidato a amante pode insistir. Insiste, também, como o Carlos, que foi compreendido por Maria e recebeu sua explicação do porque ela não queria ficar com ele. O que a outra pessoa faz continua mostrando beleza, aos olhos do amante não correspondido. Ele reúne uma porção de manifestaçöes do seu amado, para manter seu amor. Tem amigo de Carlos que o acha meio bobo, meio fora da realidade por gostar de quem não gosta dele. Bem, mesmo que seja correspondido, mesmo que receba uma resposta que justifique e incentive o interesse amoroso, o amante sempre ama algo além do indivíduo a quem ama. Isso porque o amor é justamente ver algo além, irreal (para Platão seria mais real), na pessoa do amado. Ama-se alguém porque sua beleza, suas virtudes (que são formas de beleza física, e toda beleza é física), fazem lembrar, vivenciar todas as coisas bonitas e boas que existem. Vir a amar alguém requer a reunião de elementos dele e a experimentação de coisas gostosas quando se está na sua presença. Requer, também, delicadeza, tato no lidar com quem se ama. João, num dia, disse estar interessado na Maria. Uma amiga dela lembrou-a de quem é o galinha da turma. Mesmo assim, Maria ficou com João. Reprovava-se João por ele não parecer realizar aquele trabalho de sentidos e de alma com relação a cada pessoa de quem ele se dizia interessado. Ele precisava curtir internamente o interesse por alguém e preparar sua ação em busca de dele. Quando se começa a sentir amor por alguém, se quer atirar-se para ele, entregar-se ao prazer junto dele. No entanto, a autocontenção é necessaria, e ela vem com um "agora não", do outro, e um engolir o impulso e o ocupar-se da admiração desse outro, a certa distância das mãos. Esse autoconter-se acontece no interior de uma relação amorosa. A atitude que torna-se pública pode ser a que veio com a falha da autocontenção do amante: uma atitude enciumada, ou um tomar o outro à força. João passou a gostar de Maria, depois que ficaram. Teria ele gostado de outras, com quem por ventura tivesse se interessado? Não dá pra dizer. Mas o seu "atirar para todo lado" era reprovado por ser uma caricatura do ser homem: se o homem é o que se interessa por alguém e nele investe, com esforço, o que desiste ao ouvir um não, é fraco; se o homem é conquistador, deixar seu alvo escapar e denunciá-lo mostra sua falha e seu ridículo. Ele quis algo e não conseguiu ter. Carlos também não, mas nele se via reserva e paciência. Mas, veja, João gostou mesmo de Maria! Quem diria? Não! Ele não era alguém vazio. Outro, no lugar dele, poderia ser. Mas esse João, que via beleza e buscava várias mulheres, por uma foi correspondido, recebeu mais motivos para achá-la bonita e com ela ficou. João fez amor com Maria, e, com o amor feito, ficou amando-a. Os amigos bem falavam "quando ele se apaixonar por alguém, vai ficar de quatro'.

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