sexta-feira, 13 de junho de 2014

Política não é para qualquer um pôr a mão

Não há quem não reconheça que o Brasil seja um país de profunda desigualdade sócio-econômica. Agora, se tem justiça social, ou não, a opinião da direita difere da esquerda: grosso modo,segundo a primeira, a existência de pobres deve-se a fatores individuais, como a tal "indolência do brasileiro", ou à falta de educação que não é falta de política educacional, mas predominância de professores, alunos e pais preguiçosos. A polícia é chamada como "agente motivacional e moralizador", obrigando-os a trabalhar, a estudar e a ficar o resto do tempo em casa. Nesta visão, o indivíduo de baixa renda, e discriminado pela sociedade, não é vítima de injustiça. A esquerda afirma que a desigualdade de renda, de acesso a postos de trabalho e de posições valorizadas são, sim, fruto de uma grande injustiça social: a educação privada é para poucos, e dela sairá a elite que mandará em tudo, inclusive no pobre, que só pôde estar em uma escola pública destruída, que não lhe abriu oportunidades na vida. Ricos e pobres, do presente, são posições ocupadas pelos filhos dos ricos e pobres do passado. Isso se repete, geração após geração, e a saída disso estaria na forte presença social do Estado. Mas, repito: que o país é muito desigual, até a direita concorda. E o que a própria sociedade dividida diz sobre a desigualdade e a injustiça? Pegarei um exemplo da música popular e da mpb, dos anos 70, um do rock dos 90, e o vídeo do Porta dos Fundos, parodiando a abordagem policial a jovens de classe média, de hoje. Bezerra da Silva era da favela. Seus pagodes eram crônicas da vida apertada economicanente, que justificavam virações, que incluíam pequenos crimes. Mas tudo bem disfarçado, e expresso apenas insinuada e jocosamente pelo Bezerra. O policial, também oscilante entre o legal e o ilegal, era uma ameaça aos expedientes e, sobretudo, à diversão na favela. O tratamento com ele devia ser de um respeito malandro: de parte a parte, a fala cuidava do fazer de conta que se fazia o certo, e não se fazia o errado. A desigualdade era falada, mas o jogo era aquele mesmo e era preciso ser jacaré, nadando de costas em rio de piranha. Era a época mais repressiva da ditadura. Para a classe média, Chico mandava, por mensagens cifradas (só entendidas pelos próprios artistas e certos grupos estudantis, na época. Depois, na volta do governo civil, é que o mistério apareceu contadinho em todo livro de história, para o segundo grau), que não havia qualquer liberdade de expressão. Oficialmente, éramos uma democracia, mas, de fato, a sociedade não podia opinar na política, e não tinha acesso aos dados sobre aumento do desemprego, do número de pobres e miseráveis, e de favelas. A desigualdade era desconhecida, e o não poder falar nela, e sobre o próprio não poder falar, era uma silenciosa, e gritante, usurpação de direitos. Nos redemocratizamos. O rock dos 80 foi cores, danças, para extravazar. Enquanto se discutia a economia, e se decidia quanto ao que fazer na política, girls just wanted to have fun. Mas, nas universidades, começa a se alastrar um pensamento de esquerda. O legado, do regime militar, de desmonte da escola pública, do direito do trabalho, as incontroláveis inflação e dívida externa, e as desigualdades precisavam de pesquisa e denúncia. Os anos 90 chegaram, e esses problemas continuavam. A violência policial contra moradores de favela, que chegavam aos milhares, assusta a todos. Surge o Planet Hemp. Marcelo D2 era de família classe média baixa. Quando jovem, foi à escola. Nas horas livres, jogava bola com outros moleques. Essa vivência de rua, de falar as coisas abertamente, foi aproveitada no rock. A música Porcos Fardados contava da violência policial contra pobres e jovens de classe média que se divertem na rua e, eventualmente, fumam maconha. As injustiças sociais apareciam, nas músicas, junto da ação violenta da polícia contra pobres e quem com ela se misturava. A Porcos Fardados foi proibida de aparecer nos shows do Planet Hemp. Quando se ousou falar diretamente, sem disfarces, contra a violência estatal, a censura foi empregada. Enquanto isso, já acontecia o funk, nos morros cariocas. As músicas que foram tocadas fora dali, ganhando o asfalto, falavam das desigualdades, mas de forma não tão explícita, e não apontando os erros da polícia, que imediatamente faria represálias. Pisavam em ovos e deveriam ser suaves e brincalhonas, como Bezerra. A classe média pôde ter uma abordagem mais direta dessas questões, por se sentir relativamente protegida para expressar o que pensava. A prisão dos integrantes do Planet Hemp, sob a alegação de que faziam apologia à droga, mostra que não há essa proteção. O discurso da classe média, se saísse da boca de um favelado, mataria este. Dito por aquela, é tolerado até o ponto em que parece contaminar os jovens e famílias que mais educam, são educados e opinam, na sociedade. O Porta dos Fundos fez um vídeo em que policiais são revistados da mesma maneira como, de fato, revistam indivíduos como os que fizeram papel de revistadores: com deboche e abuso. O cara da classe média não está mais tão livre da violência do Estado. Ele circula, se relaciona com outros estratos, comete suas ilegalidades, tem oferecido suborno à polícia e tomado um ou outro tapa na cara, da mão que não pegou o dinheiro. A polícia está impaciente, e seguindo um clamor geral de que a classe média não pode se manifestar como tem feito, nem cometer pequenos delitos, e que a polícia pode substituir suas famílias, na educação, e a justiça institucional, na punição dos seus filhos. Que meu filho leve uma boa dura, pra parar de ir pra rua reclamar de injustiça. Sempre houve, nesse estrato social, a ideia de que direitos são do interesse exclusivo dos pobres. Então ela vê como um rebaixamento dela mesma que seu filho esteja reclamando por eles, no meio de tanta gente e câmeras. O Estado tem ouvido pouco as manifestações. Põe a polícia pra conter e exercer baixa violência geral, e moderada violência pontual. A intenção não é nem que as manifestações parem: é que elas ocorram para as forças do Estado continuarem com as punições sumárias em fogo brando. Que as pessoas apanhem por se meterem na política. Política é para poucos, escolhidos (literalmente!) não pela população. Se um grupo de humor mostra a truculência da polícia, numa denúncia, e coloca essa truculência na mão do manifestante, como revide, fica ridículo pro Estado e a polícia. A ameaça sofrida por Fábio Porchat é realmente pelo ridículo que os policiais passaram: aqueles que quiseram que eles humilhassem um pouco os jovens na rua, sem dar muito na vista, estavam rindo muito da inversão dos papéis e de suas calças arriadas. Os policiais foram traídos! A política também é para os espertos.

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