quarta-feira, 18 de junho de 2014

Sem eu e sem sujeito

Filme "Violent Shit" (dir Andreas Schnaas, 1987). O cara encontra um homem na floresta. Corta sua cabeça. Encontra uma mulher. Corta seu braço. E a cabeça. Encontra mais um homem. Abre sua barriga e retira os órgãos gosmentos. É isso. Centopeia-Humana e Sexta-feira 13 também são isso, mas com uma historinha para dar motivo. Há centenas de filmes com gore, com ou sem motivo. O assassino não é um caçador: quem ele encontra pelo caminho terá o corpo mexido. Ele abre o armário e tira as roupas. Remexe as gavetas, em busca de alguém. Apenas coisas gosmentas que se lavam, se dissolvem. O personagem encontra Jesus na cruz. Eu e você não concebemos a dor de ser crucificado. Jesus a suporta, com corpo intacto e o rosto triste, não desesperado. Então tenho esperança, espero suportar o meu sofrimento. Ele não me despedaçará. E Jesus tem o fardo e a resistência que lhe cabem. Mostra que o meu fardo (olhamos para Jesus quando nossa consciência dói) é muitíssimo menor, bem como a resistência necessária. Aquiles matou Heitor, o melhor dos troianos. Heitor havia matado o companheiro de Aquiles, Pátroclo. Aquiles amarrou os pés de Heitor a um cavalo, e fez com que seu rosto fosse arrastado no chão. Heitor era bom marido, bom cidadão, bom soldado e bom devoto de seus deuses. Aquiles estava colérico, insuflado por Hera. Mas também bestial. Apolo e Afrodite protegeram a integridade do rosto e do corpo de Heitor, não apenas da insanisade de Aquiles, mas dos efeitos do tempo. O bom homem, no sentido de homem virtuoso, é protegido pelos deuses e, de certa forma, não se degrada. Ganha permanência, ainda que continue sendo mortal. No filme, cavuca-se o corpo do outro e não se chega a nada. O cavucador também não tem eu. Nem é um sujeito. Ele é apenas um mecanismo. Não há pergunta a si mesmo. Não há si mesmo, na jogada. Sloterdijk, lido por Ghiraldelli, diz que sujeito é alguma coisa que consulta a si mesma, encontra sua motivação (um motor) e se aciona. Dorian Gray ganhou um belíssimo retrato dele mesmo. Foi um canalha com uma moça. Seu próprio rosto continuava belo. O retrato, porém, ganhou, um ar de cinismo. Dorian não pôde mais ver o retrato. Trancou-o. Que as coisas que ele fizesse simplesmente passassem se lhe formarem uma consciência, esse inquiridor íntimo. Matou, roubou, era rico, divertia-se. O retrato enfeiava, além de envelhecer. Dorian não o olhava, e continuava um mistério de belo e jovem. Eis que, então, acabou vendo o retrato. Viu-se diferente do rosto imaculado que pensava ter. Sua eterna juventude fora atingida pela degradação natural, que é dele e de tudo. Não havia um eu, pois ele não tinha consciência de si. Ou o seu eu era completamente raso, sem apoiar-se em qualquer registro, memória. O reflexo cheio de memórias, do retrato, cortou-lhe a face etérea. O vasculhador mexe na própria barriga. O que há ali? Ah, as mesmas tripas e órgãos, essas coisas que se estragam. Como um robô, ele continua. Tira um bebê de dentro. Pensamos que finalmente houve um nascimento, um sujeito pode vir a ser possível pois ele olhará o bebê e então a si mesmo como tendo que cuidar do bebê. E também haverá um eu, uma consciência de si. Qual! Ele morre, e o bebê tem a mesma marca que ele trazia no rosto. Um rosto impossível de ver a si mesmo. O vasculhador continuará agindo. Sem saber porque age. E sem ter um eu.

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