sexta-feira, 20 de junho de 2014

Miséria e ódio

Certa vez vi um garoto de oito anos falando sobre as opiniões de outras pessoas acerca de um filme. Analisou os erros e os acertos das opiniões, e só então deu sua própria. Em 2012, o filósofo americano Michael Sandel deu uma série de palestras em Havard, com o título “Justice – What’s the right thing to do?”. Estão todas no Youtube. Em uma delas (http://www.youtube.com/watch?v=Ch7qpPSuDMM), Sandel apresenta o libertarianismo de Robert Nozick. De acordo com a exposição, os frutos do trabalho de um indivíduo são de sua propriedade. O Estado não deve arrecadar impostos para o custeio de políticas públicas de saúde ou educação, das quais os pobres mais se beneficiariam. Serviços como polícia e bombeiros, nada que cheire a redistribuição de renda, seriam os únicos a serem oferecidos, neste Estado mínimo. Assim, uma proposta como o aumento de impostos para os mais ricos, seria inaceitável. A taxação de um indivíduo, proporcionalmente à sua riqueza, é, para Nozick, roubo de algo que é dele. E, como para trabalhar o indivíduo emprega seu tempo, a quantidade de tempo necessária para produzir aquilo que lhe foi tomado acabaria indo para o Estado. É como se ele tivesse trabalhado de graça, durante aquele período. Haveria, aí, uma situação moralmente equivalente ao trabalho escravo. Esta é a razão pela qual, para Nozick, qualquer medida redistributiva de renda é injusta, portanto, imoral. A cada aula, para turmas de cerca de mil alunos, Sandel apresentou as principais ideias de diferentes doutrinas de filosofia política, e os debates históricos que definiram os principais argumentos favoráveis e contrários a cada uma delas. Lançou situações-problema para sua plateia, como forma de provocá-la a dar respostas que fizessem emergir posicionamentos mais utilitários, mais libertários ou mais igualitários. Escutou as respostas, elencou-as e as organizou em quadros comparativos. Sandel certamente possuía uma opinião própria sobre cada teoria ou situação que propunha à plateia. No entanto, permitiu que cada filósofo pensasse nos problemas, no lugar dele mesmo. Deixou os filósofos trabalharem. Pôde abrir aos alunos o modo com que se desenvolvia cada raciocínio, e como aquele trazido por eles próprios traziam uma fundamentação mais próxima deste ou de outro filósofo. O que Sandel estava ensinando, antes de tudo, era uma disciplina para a conversa que cada um tinha consigo mesmo e com os outros, quando diante da vida e de discussões. Esta disciplina, a condução da conversa à maneira de cada filósofo, é o próprio modo de se estudar filosofia: em conversas com filósofos. Retornando a Nozick, a posição libertária nos soa estranha, pelo mesmo motivo que fez uma das alunas do curso pedir a palavra e colocar em questão a ideia fundamental do libertarianismo: a autopossessão. Viver em sociedade, trabalhando e gerando riqueza, implica que a força de trabalho de um indivíduo, e o modo com que este trabalho se organiza e realiza, seja inseparável de uma família, de instituições e de outros indivíduos, além dos altos e baixos da economia, do trabalho e das oportunidades, que independem dele. Um indivíduo, ao produzir e acumular riqueza, deve tributos à sociedade em que trabalhou e enriqueceu. Desta forma, complica-se a ideia da autopossessão, do ser dono da própria força de trabalho e do que advém dela. A existência de pobres, nesta sociedade, é uma questão a ser manejada pelo Estado que, por sua vez, precisa do que arrecada em impostos. O justo seria, portanto, quem possui mais riqueza contribuir mais. Na página deste vídeo, há mais um comentário à exposição sobre Nozick, agora dizendo que o raciocínio dos libertarianistas é bem montado, consistindo, assim, numa boa estratégia dos ricos para defenderem seus próprios interesses. Gastos sociais são crimes que o Estado comete contra eles, que não podem ser chamados para se implicarem na resolução das desigualdades sociais. Este comentário é puro ódio ao rico. Não comenta o raciocínio de Nozick, e seus pressupostos. Se alguém faminto me aborda na rua, compro comida ou convenço alguém a comprar. É claro que a indignação deve deixar para depois qualquer teoria. Diante da miséria, a razão deve ser prática, ou será cínica, tenderá a justificar o injustificável. Depois posso perceber as filiações mais igualitárias do meu modo de pensar. O comentário ao vídeo não gosta de teoria. Teoria é artimanha de ricos. O miserável, ou outra minoria, é o exemplar de um mundo doente e perverso, uma vítima dos ricos. Não se alimenta e dá abrigo a um mendigo porque ele precisa, mas porque os ricos são maus. Isto está presente em nosso senso comum, na parte em que uma cultura universitária o toca. Fica-se com a primeira teoria jogada por um professor que foi antes doutrinador do que alguém que apresentou raciocínios e ensinou a disciplina do saber e do pensar. O uso que se faz dessa teoria é irracional, não é pensado e não é empregado para pensar a realidade. Há militantes de todas as causas que trazem esse pressuposto de que o mundo é mau, divide-se em vítimas ou agentes da maldade, e que é preciso defender os primeiros com todas as forças. Nietzsche mostra, no Genealogia da Moral, que o motor desses militantes não é o amor pelo outro, mas o ódio ao mundo. E não se busca a liberdade desse outro, mas que ele se mantenha como vítima, e o salvador na posição de salvador. O suposto amor a ele esconde, na verdade, um sentimento perverso do salvador, nada cristão, desinteressado em ajudar. Não é preciso pensar no problema da mulher, do negro, do gay, do pobre. O machismo, o racismo, a homofobia e o elitismo estão em toda parte. O militante que age por incapacidade de pensar, e por ódio, encolhe-se ao lado de sua vítima, ao primeiro sinal das teorias “inimigas”. Uma aluna do curso de Biblioteconomia, da UFF, acusou sua professora de racismo (http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=89225), por, em uma prova, haver um texto defensor da tese de que há uma natural inferioridade intelectual dos negros, e uma propensão destes ao crime. A prova pedia que se analisasse o texto e atacasse seu raciocínio, utilizando teorias culturalistas. Na reportagem, a aluna afirma que tal embasamento não foi fornecido previamente pela professora, e que ela, universitária, não tem condições intelectuais de atacar o texto ofensivo aos negros. E se disse humilde. Preferiu acionar a OAB e o movimento negro. Ela poderia ter lido o texto, identificado o raciocínio que inferiorizava os negros, então contra-atacado da maneira como lhe fosse possível, com os recursos que tivesse. Mas parece haver uma identificação com o sofrimento, um dizer que se é tão humilde quanto quem digo que é humilde. Estamos vendo o Joaquim Barbosa sofrendo ataques racistas da esquerda, pois este ousou ocupar a posição em que está, e desempenhando muito bem seu papel de fazer justiça. Não conseguimos ver aqueles a quem identificamos como minoria saindo dessa posição, e tendo destaque, tendo poder. Há uma parte das diferentes militâncias que atrasa o lado de quem diz defender. É uma parte que se forma pela miséria intelectual, e pela identificação parasitária com a "sua minoria".

Nenhum comentário:

Postar um comentário